Na verdade, os países que consideramos mais pacatos e menos temperamentais, são aqueles em que a posse de armas é mais livre. Na Suíça, que não entra em guerra desde o século XVI e teve as últimas escaramuças civis em 1802, todos os homens em idade militar têm uma arma de guerra em casa e 29% possuem uma licença adicional de porte.

Mas também há países que não relacionamos habitualmente com desenvolvimento e boas maneiras onde o armamento é deixado ao critério de cada um. No Panamá não há quaisquer restrições de porte, à vista ou debaixo do casaco, assim como em Timor, que tem mais restrições no que toca ao casaco.

Mesmo países médios, digamos assim, isto é, considerados normais numa escala ambígua de progresso e bom senso civil, o desnecessário porte ou posse de armas é bastante liberal. A França, por exemplo, ou o Canadá, onde 23,8 por cento dos lares estão defendidos.

Toda esta conversa para chegar ao cerne da questão: o problema das armas não são as armas, é a cultura que as carrega. Isto porque ainda ontem, na Florida, um maluco arranjou umas desculpas para matar cinquenta pessoas e ferir outras cinquenta, e lá veio o coro habitual sobre a tara norte-americana de andar toda a gente armada. Pois claro, um país onde qualquer um pode comprar uma metralhadora ou um lança granadas, têm de acontecer estas coisas – e acontecem, num ritmo alucinante. Para não mencionar os tiroteios diários, a violência policial, as polícias de choque que andam em carros blindados e com protecção pessoal igual à do Afeganistão. Ou o facto da população encarcerada ser a maior do mundo, em termos percentuais.

Por acaso ninguém se lembra dos países estatisticamente mais perigosos da face da terra, como a Federação Russa, o Paquistão, Brasil, ou El Salvador (não forçosamente por esta ordem).

Veja-se qual a situação legal nos Estados Unidos. O porte de arma é permitido pela Segunda Emenda da Constituição, que data de 1791. Filosoficamente, faz parte do conceito individualista de que qualquer homem tem direito a possuir o que quiser, incluindo armas para se defender. Historicamente, tem a ver com a luta pela independência contra os ingleses e a conquista de território aos donos anteriores, os índios. Os tempos mudaram, já não há colonialistas em ingleses a vencer, porque desistiram, nem indígenas a abater, porque ou morreram ou se aculturaram. Mas o princípio ficou e não são só os malditos fabricantes de armamento que o defendem; são também os cidadãos, como o provam incontáveis sondagens e eleições de governantes pró-armas. Dos 50 Estados norte-americanos, 30 permitem porte de arma (escondida) e quatro não têm restrições à compra: Arizona, Geórgia, Kentucky e Wyoming. Em apenas três, há grandes restrições: California, Connecticut e New York. Até 1934, a legislação nem separava as armas automáticas (vulgo metralhadoras) das outras. A partir de 1986, uma lei assinada por Reagan proíbe a venda de automáticas, mas permite as semi-automáticas (aquelas que é preciso apertar no gatilho a cada tiro, mas não é preciso armar a culatra). Contudo são legais os calibres que nós aqui consideramos de guerra (7.62mm e 9mm). Um tiro de 9mm derruba um homem só pelo impacto a um quilómetro de distância.

O argumento a favor de andar toda a gente armada é sobejamente conhecido e apregoado pelos seus defensores e pelo lóbi dos fabricantes: se for difícil ou quase impossível os homens de bem comprar uma arma, as armas ficam todas nas mãos dos bandidos, que não terão problema em encontrá-las. Quando foi o massacre na escola de Sandy Hook, a NRA (National Rifle Association) afirmou que a solução era os professores terem pistolas nas aulas, para proteger os alunos. É possível imaginar um maior contra-senso?

O Presidente Obama, que é contra as armas, tentou duas leis restritivas; na primeira, obrigava o comprador a identificar-se e apresentar registo criminal; na segunda, tornava obrigatório um dispositivo electrónico com o qual a arma reconhecia o dono, isto é, só disparava se fosse ele a premir o gatilho. Nenhum das leis passou no Congresso, para alegria geral dos mais de 200 milhões de americanos que se calcula que têm armas – no país das estatísticas, esta não existe... mas sabe-se que há 317 milhões de habitantes e 357 milhões de armas.

Todavia não é o número de armas nem a facilidade em obtê-las que dá aos Estados Unidos esta reputação de violência. É, em grande parte, o factor mediático; morre um miúdo abatido pela polícia em Pleasantville e a notícia sai no mundo inteiro, enquanto são assassinadas 160 pessoas por dia no Brasil ou mais ainda na Nigéria e nem chega aos noticiários nacionais. Por outro lado, é o motivo. As mortes no Brasil ou na Nigéria tem motivos tipificados: assalto, vingança. Nos Estados Unidos a maioria das mortes só encontram razões do foro patológico. O "lone wolf" (atirador solitário) que sobe à torre da igreja para atirar a eito para a praça, ou o "serial killer" são fenómenos tipicamente norte-americanos, nunca vistos na Suíça ou na Suécia. Do mesmo modo que, por exemplo, a violação de menores na maioria dos países ocorre entre pessoas que se cruzaram por acaso, e em Portugal acontece dentro do círculo familiar. Cada cultura tem os seus demónios próprios, os seus infernos profundos.

Do mesmo modo, todo o planeta sabe quem é Omar Mateen, o americano descendente de afegãos que se deu ao trabalho de percorrer 200km para matar 50 inocentes em Orlando, mas ninguém conhece, ou quer saber quem foi, o bombista suicida que no mesmo dia fez explodir mais de 100 inocentes em Bagdade. Omar tinha as suas desprezíveis razões, todas misturadas numa amálgama maldita: radicalismo religioso, homofobia, frustração pessoal, fanatismo místico. E, também, o tal factor cultural do país onde nasceu.

Conclusão? Não há conclusões. As armas não vão acabar, nem nunca será difícil obtê-las. O Homem, também parece que não muda. Mata porque acredita em algo superior ou, pior ainda, porque não acredita em si próprio.