A Tunísia, há uma década, assombrou o mundo ao desencadear o que então foi chamado de Primavera Árabe. O povo, revoltado contra a oligarquia insensível da família Ben Ali tomou a rua para exigir pão, dignidade e liberdade. 

Foram dias de paixão que lembraram aqueles do 25 de Abril português, em que o ímpeto da revolução prometia um país novo: emprego para quem quer trabalhar, educação e saúde para todos, condições básicas de vida, eleições livres, democracia plural e estado de Direito. Eram as exigências que passaram a ser esperança de quem avançava naquele levantamento popular que logo foi batizado como Revolução de Jasmim.  

A revolução triunfou, mas os sonhos são sonhos e na hora de despertar entra a frustração de tantas promessas traídas. Há eleições, há democracia apesar de frágil, mas todas as aspirações sociais e económicas estão por cumprir e o quadro geral até piorou, com os bens essenciais cada vez mais inacessíveis por causa da inflação. 

A Tunísia, tal como tantos países de África, afoga-se lentamente em dívidas que não tem como pagar. É uma economia de muito baixos salários e enorme desemprego sobretudo jovem, que exporta matérias-primas com escasso valor acrescentado, ao mesmo tempo que precisa de importar energia e outros bens essenciais, embora sem ter dinheiro para pagar.

Os tunisinos — mais de 11 milhões que continuam no país, tantos, sobretudo os mais jovens, a procurarem como emigrar —  têm sobre as costas o peso da dívida, dos juros e da falta de desenvolvimento que vem dos 24 anos do regime oligárquico de Ben Ali. É uma dívida, a credores pouco tolerantes, que não deixa a Tunísia levantar-se.

O turismo foi a tábua de salvação para evitar maior naufrágio. Mas a pandemia fechou o fôlego ao turismo que está a zero há ano e meio.

A covid-19 fez da Tunísia um dos países africanos mais massacrados pela pandemia: quase 600 mil contágios, cerca de 20 mil falecidos. Esta catástrofe alimentou ainda mais a desconfiança geral na condução política do país.

A fúria generalizada levou à convocatória pelas redes sociais de manifestações de protesto nas principais cidades da Tunísia, na tarde do último domingo de julho.

O presidente da República, Kais Saied, que já estava em choque com o governo, deu um golpe de autoridade: demitiu o primeiro-ministro e suspendeu, por 30 dias, toda a atividade do parlamento. Ficou desencadeada a maior crise institucional na Tunísia desde o derrube da ditadura em 2011. 

O partido islâmico Ennahda, muito conservador, de imediato denunciou: golpe de estado desencadeado pelo presidente.

O Ennahda é o partido mais votado na Tunísia. Esteve interdito no tempo de Ben Ali, foi legalizado em 1 de março de 2011 pelo governo de unidade formado após a queda da ditadura. Houve em 23 de outubro desse ano as prometidas eleições constituintes e o Ennahda foi confirmado como primeiro partido da Tunísia com 89 dos 217 deputados. Perdeu a liderança nas eleições de 2014 mas recuperou-a em 2019, num parlamento muito fragmentado, com 30 partidos e nenhuma união.

Rached Gannouchi, líder do Ennahda, depois da forte contestação inicial mitigou o discurso, que passou a oscilar entre ameaças e propostas conciliadoras "para defender a continuidade da democracia". Gannouchi percebeu que muitos tunisinos, fartos dos políticos, estavam a apoiar as decisões do presidente e a reclamar que a suspensão do parlamento evoluísse para dissolução e convocação de novas eleições. Vários analistas políticos na Tunísia afirmam que eleições não vão alterar o essencial.

O Ennahda está a ser contestado até por muitos dos seus eleitores. Sabe-se que o Ennahda colocou gente sua em todos os serviços da administração pública. Como há a noção de que nada funciona, a insatisfação vira-se contra o Ennahda.

Muitos dos 217 deputados estão metidos em histórias com suspeitas de corrupção. Estes rumores somados com a desastrosa gestão da crise sanitária, o miserável nível de vida e desemprego acima dos 50% colocaram este nosso quase vizinho a sul em estado de caos e ameaça da bancarrota.

Não se vê saída para esta crise, apesar de na história recente da Tunísia ter havido uma bem-sucedida experiência de negociação entre sindicatos e associações da sociedade civil, recompensada com o Nobel da Paz de 2015.

Muita gente na Tunísia, incluindo vários académicos, lastima que a União Europeia não tenha dado atenção aos apelos da Tunísia com quem só negociava quando se tratava de conter as vagas migratórias.

Há quem lembre que no tempo de urgência a seguir à Primavera Árabe a Europa também não ligou à Líbia (que se tornou país sem estado, base para terroristas) e o Egito (que assim se afastou da democracia para voltar ao comando de um general autocrata).

A Tunísia ainda é a única democracia árabe e é um nosso vizinho a sul. É um facto que a União Europeia, no quadro financeiro plurianual 2021/27, já inscreveu um capítulo "Neighbourhood and the world" que prevê alguma ajuda à Tunísia e a outros países.

Para que a Tunísia possa continuar democrática é preciso ajudar o país a combater a desigualdade, a corrupção e o autoritarismo. É do interesse de todos que um país vizinho que já escolheu a democracia seja ajudado, com respeito pela soberania tunisina, a livrar-se do nepotismo, da corrupção e da miséria.

É tempo de a União Europeia sair da fase do "deixa andar" no Magrebe e no Médio Oriente e definir uma estratégia forte para ajudar os países que sonharam a Primavera Árabe. Assim a Europa também se ajuda a resolver problemas da crise migratória.

A TER EM CONTA:

A extraordinária solidariedade leva a melhor sobre os demónios na capital do Líbano. Faz agora um ano que uma dupla explosão devastou a zona portuária da cidade de Beirute tão massacrada por tantas guerras. Agora, um ano depois, o essencial está reconstruído e melhorado. É um formidável exemplo de solidariedade da sociedade civil libanesa e internacional. 

A realidade afegã, após 20 anos de guerra, volta ao mesmo. Outra vez a escalada dos talibã.

Histórias exemplares: atletas que, com determinação, saltaram da pobreza para o pódio olímpico.

Salvem os tigres.

O livro que revela criações desconhecidas de Frida Kahlo.

Cinco primeiras páginas escolhidas hoje: esta, esta, esta e esta.

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