Esta quinta-feira comemorou-se o 80.ª aniversário do Dia D, o famoso desembarque dos Aliados na Normandia, que iniciou a contagem decrescente para o fim da II Guerra Mundial. Foi institucionalmente comemorado, sem festividades populares e sem a participação da Rússia, o que significa que os governos europeus e americanos (Estados Unidos e Canadá) precisam desesperadamente de mostrar união, e que a ameaça de Putin é uma realidade incontornável.
O facto é que estes 77 anos de paz, tendo muitos resultados positivos, não garantiram um futuro luminoso. A situação actual e as projecções são mais sombrias e parece que os países europeus - formalmente associados na UE ao fim de séculos em que se guerrearam entre si - não estão de facto unidos nem se conseguem coordenar para garantir “os amanhãs que cantam”.
Os indicadores são evidentes. Em 1960, os 28 países da UEE criavam 36,% do PIB (Produto Interno Bruto) mundial. Em 2020, já sem o Reino Unido, a percentagem caiu para 22,4%. As previsões são de apenas 10% no final deste século. (Como comparação, os EUA têm mantido consistentemente cerca de 25% do PIB mundial desde a década de 1960.)
O investimento privado também não cresce, e em 2022 era 60% do norte-americano, que continua a subir. No rendimento per capita, é 27% mais baixo do que do outro lado do Atlântico. E a produtividade tem crescido mais devagar do que nas outras grandes economias, ao mesmo tempo que os preços da energia são muito mais altos.
A Europa está atrasada nas metas de transição para energias renováveis, na capacidade de produzir tecnologias limpas e nos investimentos relacionados com as redes de fornecimentos. Exemplos desta última limitação são a ausência de um caminho de ferro de alta velocidade entre todas as capitais europeias e a inexistência de uma rede de transmissão de energia entre todos os países membros. Outro indicador, os europeus usam 34 redes móveis (telefone e Internet), enquanto a China tem quatro e os Estados Unidos três.
A tentativa de criar uma política agrícola comum tem encontrado uma resistência activa dos lavradores em França e na Bélgica, que também são contra os controles ambientais europeus ao uso de pesticidas e fertilizantes.
O projecto de criar um mercado de capitais único tem sido empatado por países de menos peso, da Roménia à Suécia.
Na verdade, a Europa consiste em 27 mercados que não estão completamente integrados, nem há desejo para que estejam - tanto da parte dos líderes, que querem manter um certa independência e poder de decisão, como dos cidadãos, que gostam das tradições, hábitos e idiossincrasias dos seus países. No mês passado 13 grupos civis escreveram uma carta aberta afirmando que uma homogeneização num mercado (mercado, não no sentido negocial, mas com as mesmas normas) pode prejudicar os consumidores, os trabalhadores e as pequenas empresas, dando aos conglomerados empresariais demasiada influência, o que levaria a um aumento do custo de vida, além de mudar as prioridades económicas, sociais e ambientais.
Pode ser que tenham alguma razão, mas a disparidade tem inconvenientes; não há nenhum sector de ponta - inteligência artificial, circuitos integrados (microchips), software, robótica, genética - em que a Europa tenha algo de inovador a apresentar. Não tem uma Microsoft, Amazon, Nvidia ou OpenAI ou qualquer outra empresa na vanguarda. (Há excepções, como a Novo Nordisk.)
Outro aspecto assustador é a situação demográfica. Em 2022 nasceram 3,9 milhões de europeus e morreram 5,51 milhões. Ou seja, a população “nativa” está a diminuir e, simultaneamente, a envelhecer. Por outro lado, a população imigrante, sobretudo muçulmana, tem um índice de fertilidade muito superior. Nos países muçulmanos há uma menor esperança de vida porque as condições sanitárias são más, mas quando integrados no “modelo social europeu” de assistência médica, o índice sobe.
Segundo as estimativas, em 2050 17% da população do Reino Unido será muçulmana, 17% em França e, pasme-se, 20,5% na Suécia. Não é racismo nem xenofobia reconhecer que os muçulmanos não gostam nem aceitam o modelo europeu de tolerância moral e liberdade política. A tão apregoada e pouco praticada “integração” - ou seja a aceitação dos nossos valores por esses imigrantes - simplesmente não acontece.
Um resultado directo desta situação é o crescimento dos partidos de extrema-direita, xenófobos e racistas, que jogam com o medo dos “nativos” com a crescente visibilidade dos “estrangeiros”. Vemos esse crescimento em toda os países. Se em alguns, como o nosso, o perigo do radicalismo racista (Chega e ADN) ainda está longe de ser dominante, há fortes probabilidades de tomar o poder em França, no centro moral, geográfico e político da UE. Até na fortemente democrática Suécia a direita nacionalista obteve 17,5% de votos nas eleições de 2022. Isto para não falar da AfD alemã e, evidentemente, do Fidesz de Viktor Órban, um farol mundial do “iliberalismo”.
Temos ainda a situação militar para nos preocupar. Com o fim da Guerra Fria, em 1989, todos os países europeus diminuíram substancialmente a produção de armamento, acabaram com o serviço militar e criaram pequenas forças armadas profissionais, suficientes para missões específicas, mas sem poder para suster um conflito nacional. A Alemanha, por exemplo, passou de 500 mil militares em 1990 para 191 mil em 2020. A marinha britânica, que era a mais poderosa do mundo antes da II Guerra Mundial, tem atualmente 10 submarinos e 20 navios da grande porte, alguns inactivos. Segundo os cálculos, não há nenhum país europeu que neste momento possa aguentar um conflito com mais de dois meses. (A excepção é a Polónia, cujo historial com a Rússia nunca foi esquecido e gasta 5% do orçamento com as suas forças armadas.)
A questão não é só o armamento, embora o armamento seja uma questão, com certeza. Há vários países europeus a montar fábricas e reavivar outras para produzir aviões, veículos blindados, artilharia e munições, mas as projecções indicam que só para finais de 2025 terão capacidade para fornecer o suficiente à Ucrânia - apenas à Ucrânia. Se Putin decidir avançar para lá da Ucrânia, e vontade não lhe falta, onde está o hardware necessário? Mas a outra questão também é importante: quantos europeus estarão dispostos a morrer para defender a Lituânia ou a Bulgária? E mesmo os seus próprios países, quantos? Pior ainda, quantos dos que estão dispostos terão o treino militar necessário? Formar um corpo militar substancial demora muitos meses, anos. A Europa sozinha não tem como se defender a curto ou médio prazo.
Todos sabemos, e isso tem vindo à pedra constantemente nos últimos tempos, que os 77 anos de paz europeia foram possíveis graças à protecção norte-americana, no quadro da NATO. Desde a I Guerra Mundial (1914-18) que todos os presidentes dos Estados Unidos consideram que a defesa da Europa também é do interesse deles. Todos, menos o penúltimo e próximo, Donald Trump. A perspectiva duma segunda presidência de Trump é aterradora, tanto para metade dos seus cidadãos, como para a totalidade dos europeus. Não se fala noutra coisa em Bruxelas e nas capitais. Se essa catástrofe mundial acontecer, a Europa está entregue a si própria e, de facto, muito mal entregue.
A Europa colonizou mais de metade do mundo não como um corpo unido, mas numa competição desenfreada entre os países do continente. Cada um tentava conquistar o mais que podia para prejudicar o outro. Nem na descolonização esteve coordenada. Cada um por si - e nós portugueses, que fomos os últimos a descolonizar, bem o sabemos. Até que ponto os actuais dirigentes europeus estão dispostos a insistir nos nossos valores de liberdade e direitos vários, ao serem ameaçados pelas tendências ultra-nacionalistas de cada vez mais eleitores? Até que ponto a Europa conseguirá sobreviver a uma conjuntura internacional cada vez mais competitiva e agressiva?
Que a Europa está decadente, não carece de demonstração. Irá sobreviver, mas se for sob o domínio dos seus inimigos, talvez não valha a pena. Vamos, finalmente, atinar e tomar conta do destino dos nossos filhos?
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