A primeira pergunta que muitas pessoas farão é, com certeza, “onde raio fica a Geórgia?” Pois bem, fica numa localização nada pacífica: entalada entre a Rússia, a Norte, e a Turquia, a Sul, tem costa no Mar Negro e ainda fronteiras com a Armémia, o Azerbeijão e a Tchetchénia.
Foi incorporada à força na União Soviética em 1921 (um ano antes da Ucrânia, já agora posso lembrar). A integração foi ao ponto de muitos dirigentes de topo da nomenklatura de Moscovo serem georgianos; talvez baste lembrar o mais conhecido, Joseph Estaline, nascido em Gori ainda no tempo dos czares. Contudo, a Geórgia foi o primeiro país a declarar-se independente da Rússia, em 1991, depois de uma primeira tentativa ter sido violentamente reprimida pela pela ainda URSS, em 1988
À independência seguiu-se uma guerra civil, até 1994, além de perturbações separatistas nas regiões da Abcázia e Ossétia do Sul. Estes dois territórios até hoje têm tropas russas, o que é importante para o contexto actual.
Em 1995 o presidente eleito, Eduard Shevardnadze , tinha sido ministro dos Negócios Estrangeiros da URSS entre 1985 e 1990. Quer dizer, o país saiu da Rússia, mas a Rússia nunca saiu do país.
Shevardnadze foi derrubado por uma “revolução rosa” em 2023, da qual saiu outro presidente, logo autocrático, Mikheil Saakashvili, que aliás tinha sido um dos lugar-tenentes do deposto.
O apoio de Moscovo às regiões separatistas, nomeadamente à Tchetchenia na longa luta pela autonomia, entre 1999 e 2009, e à Ossétia em 2008, criou um forte sentimento anti-russo entre os georgianos. Em 2012, em novas eleições parlamentares, surge uma figura realmente fora do comum: Bidzina Ivanishvili, fundador do “Sonho Georgiano”. O partido ganharia as presidenciais do ano seguinte e todas as outras eleições subsequentes - presidenciais e parlamentares - até hoje. Mas Mikheil Saakashvili continua presente como líder da oposição, e a luta pessoal entre estes dois homens domina a política do país.
Ivanishivili retirou-se oficialmente do executivo em 2013, mas continua a dirigir o “Sonho Georgiano”. Está instalado numa casa surreal nas montanhas fora da capital, onde exibe muita arte ocidental - inclusive um mural dos ingleses Gilbert & George, com os dizeres “Diga foda-se aos filhos da puta dos ricos” - um jardim zoológico com pinguins e zebras e outras amenidades. A sua fortuna foi feita na Rússia e tem residências em Londres; poderia ser uma personagem dum filme de James Bond, talvez dirigido por Wes Anderson.
A questão - e agora chegamos ao presente - é que tanto Ivanishivili como Saakashvili têm-se colocado em posições idênticas, e igualmente ambíguas, em relação à União Europeia e à Rússia. Por um lado defendem a adesão à Europa, e o país apresentou a sua candidatura, aceite em Dezembro, mas por outro têm tendências ditatoriais e boas relações com Putin. Esta incoerência - ou estratégia - vai contra a opinião pública, que é cada vez mais favorável à entrada na prosperidade da UE.
Tudo estará em jogo nas próximas eleições de Outubro deste ano.
Mas, subitamente, na semana passada, o Parlamento (dominado pelo “Sonho Georgiano”, convém lembrar) aprovou uma lei sobre os “agentes do estrangeiro” que determina que todas as ONGs e empresas de comunicação social que tenham um rendimento superior a 20% vindo do estrangeiro devem registar-se e ser consideradas isso mesmo, “defensoras dos interesses de uma potência estrangeira”.
Ora esta lei, para lá do que representa de ingerência autoritária na vida pública, é copiada da lei promulgada por Vladimir Putin em 2012, ao ponto de a opinião pública lhe chamar “a lei russa”.
Embora o “Sonho Georgiano”, os órgãos do poder e a oposição de Saakashvili continuem a dizer que querem entrar para a Eu, esta legislação irá dificultar, senão impedir, essa adesão. O Governo Biden e a Comissão Europeia pronunciaram-se imediatamente, considerando que se trata de um entrave às liberdades democráticas. E o povo permanece na rua, em manifestações contínuas e gigantescas. Mais uma vez, parece que a Georgia está a seguir os passos da Ucrânia com uns anos de atraso. Talvez seja exactamente o receio duma repetição da História que tenha levado as autoridades de Tiblisi a tomar esta medida, quem sabe?
O homem do zoológico dos pinguins continua a dizer que quer a Europa o seu partido dá sinais contrários, e estamos aqui numa situação de impasse, incerteza e forças ocultas.
Os próximos meses serão decisivos.
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