No dia de abril de 2013, quando uma criatura nos seus 40 e poucos anos, com ares de inflamado guerreiro religioso, que usa o nome de Abu Bakr al Baghdadi, se autoproclamou emir e anunciou a criação de um “Estado Islâmico do Iraque e do Levante”(EI), poucos o terão levado a sério. Muitos até teremos troçado quando ele falou da reconquista do Mediterrâneo, com a intenção de tomar tudo até ao Al-Andalus, portanto com o atual Algarve incluído. O Al-Andalus tinha em Silves, na Taifa de Silves, no século XI, o seu emirato mais ocidental.
Lembro-me de nessa ocasião da proclamação do EI ter lido um livro fascinante sobre o nosso passado árabe há dez séculos. O livro é escrito por uma investigadora em estudos islâmicos, Pilar Lirola, e tem por título Al Mutamid, El Esplendor del Reino de Sevilla (edição do Instituto de Cultura e Artes de Sevilha, de 2012). Trata a figura desse monarca, Al Mutamid, que se tornou um mito, não apenas por conseguir a extensão dos seus domínios, herdados do Califado de Córdova, de Múrcia até Silves, mas sobretudo por converter a sua corte em magnete para sábios, literatos, músicos e, especialmente, poetas. Ele, Al Mutamid, para além de guerreiro que a lenda diz ter sido fino com a espada, também era poeta, chegou a viver em Silves e até lhe dedicou um poema. Eram tempos de esplendor árabe no que é hoje o Algarve. Os relatos sugerem o culto de valores e prazeres muito opostos ao deste tal Baghdadi de agora.
Sabemos de Baghdadi que este clérigo guerreiro fez nome em 2010 pelo modo como enfrentou as tropas dos Estados Unidos no Iraque. Era a época em que a Al Qaeda começava a dissolver-se em múltiplos grupos e grupúsculos cujo nome parece ter sido cozinhado numa sopa de letras do terrorismo. Baghdadi tinha chefiado um braço iraquiano da Al Qaeda, mas, como descreve Rania Abouzeid na grande reportagem The Jihad Next Door, os planos dele eram muito mais ambiciosos: emergir como terrorista global em nome do califado e partir do controlo do Iraque e da Síria para fazer realidade a utopia de um vasto estado islâmico.
Baghdadi capitalizou, a partir de 2011, a queda das tiranias militares do Médio Oriente (derrube de Saddam e de Kadafi, debilidade de Assad), que instalava a anarquia no vazio de poder. Armado com um exército aguerrido consumou, em maio de 2014, a conquista de Mosul, a segunda maior cidade do Iraque (milhão e meio de habitantes). No mês seguinte tomou Raqqa, na Síria. O mundo compreendeu então, brusca e brutalmente, que a ameaça do EI é mesmo para levar a sério. Estava criado um santuário terrorista num território com tamanho grande como o das ilhas britânicas. A fúria do EI passou a mover-se por um terço do Iraque, talvez mais de metade da Síria e chegou aos confins da Turquia. A Líbia, fogueira de instabilidade, parece à mercê. O EI controla um território com cerca de seis milhões de pessoas que submete à sua doutrina.
A campanha mediática é essencial para o êxito de Baghdadi. Ele é hábil a usar tecnologias sofisticadas do século XXI, explora as redes sociais para propagar o seu desejo de nossa regressão arcaica e a sede que tem de poder e de mal. Conquista adesões e amedronta os inimigos ao difundir através da internet as suas atrocidades, sequestros, execuções e decapitações. A ofensiva do líder do EI desenvolve-se em torno de três eixos: para além da comunicação com vídeos eficazes, o controlo do território com abundantes poços de petróleo que lhe asseguram financiamento farto e a progressiva expansão do desafio jiadista para novas frentes, da Nigéria à Tunísia, do Paquistão ao Mali, da Argélia ao Líbano, do Iémen ao Egito ou Somália. E avança no desafio mais perverso, o de incutir o medo em nós, que na Europa nos julgávamos fora da ameaça terrorista. Os últimos dez dias em Paris e Bruxelas despertaram-nos para Bamako e outros lugares onde milícias jiadistas repetem matanças. Milhares de mortos e centenas de escolas fechadas pelo terrorismo na África Central - e nós quase nem ligamos a essas notícias.
O “Estado Islâmico” de Baghdadi, embora, como escreve Luis Bassets, não possa ser reconhecido como um Estado nem deva ser considerado islâmico, deseja uma sociedade retornada a um passado asfixiante. Prevalece a leitura anacrónica do Corão desgraçadamente instalada no século XVIII por Mohamed Wahab, o teólogo saudita que aplicou o dogma da sharia e introduziu um islão rígido e integrista. É uma versão que tem praça forte na Arábia Saudita. Vem a propósito olhar para a construção desta sociedade e deste país. Tudo muito bem relatado em vários livros, por exemplo The Rise, Corruption and Coming Fall of the House of Saud ou A Brutal Friendship, ambos de Said K. Aburish (livros publicados por St. Martin’s, NY).
Neste caso da Arábia Saudita tudo começa com Abdelaziz Ibn Saud (1876-1953), definido por Aburish como “um déspota tão brilhante quanto diabólico”. É o chefe que em 1932 fundou, a partir de uma tribo guerreira que esmagou as rivais, um país que, em consonância com a realidade daquele poder, adota o nome da família: Arábia Saudita. Os reis sauditas costumam procriar com fartura – o fundador da dinastia, o tal Ibn Saud teve 44 filhos das 22 esposas oficiais - e assim preservam a continuidade do clã, embora por entre golpes palacianos.
A família Saud dirige, geração após geração, os ministérios e empresas principais não só no país como em muito do Ocidente mais rico. A fortuna jorra do dinheiro do petróleo que permite a uma tribo do Médio Oriente ter-se tornado um colosso de riqueza. Imagina-se que Baghdadi aspirará a um destino semelhante para o seu califado. Os sauditas têm gozado a complacência ocidental perante os fundamentalismos supostamente puritanos daquela sociedade que, entre outros abusos, submete as mulheres. Espera-se que a Baghdadi lhe seja barrado o caminho. Obviamente não basta, nem de perto nem de longe, para nos livrar da ameaça terrorista. Mas é um bom avanço para travar uma guerra que veio do deserto para as cidades e que tende a ser longa. Desconstruir a jiad obriga a estabilizar muitas vidas. Vai dar-nos um trabalhão para defender a nossa liberdade plena.
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