Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.


A crise da Covid-19 não foi diferente. Pouco tempo depois de se instalar, o vírus transformou-se em pandemia e a crise em krisis. Voltou o dualismo do melhorar ou morrer. De um lado tivemos apelos apaixonados à mudança ambiental, alguns baseados em factos (níveis de poluição atmosférica por exemplo) outros no retorno de golfinhos a Veneza (que afinal eram da Sardenha). Em comum tinham a crença na krisis: Mais do que apenas sobreviver à doença, o paciente voltaria à vida como ativista, mudado na sua forma de ver o mundo. Do outro lado levantaram-se os negacionistas. Primeiro apregoando a morte da sociedade e o triunfo do fatalismo, depois a morte política, o final da União Europeia, o triunfo do capitalismo selvagem. Em suma, o paciente morreria e levaria consigo toda e qualquer construção social.

Existe, no entanto, uma terceira via da krisis que tende a passar despercebida nessas colunas de opinião. Trata-se da hipótese em que o paciente não morre, mas também não recupera totalmente. Volta moribundo, irreconhecível aos seus familiares e amigos.

Receio que seja esse o cenário mais provável num mundo pós-pandémico. Não será a morte do capitalismo, não serão golfinhos em Veneza, não será o final da Humanidade. Será antes um mundo diferente com um modelo económico potencialmente mais selvagem e perigoso do que os seus parentes do século XX. O capitalismo clássico aproveitará a Covid-19 para se transformar em capitalismo de vigilância (Surveillance Capitalism) como bem aponta Zuboff. Este modelo de capitalismo caracteriza-se sumariamente por uma mudança estrutural na cadeia de produção – em vez de se utilizarem matérias-primas para fabricar automóveis por exemplo, os novos capitalistas digitais utilizam dados pessoais para vender previsões (e.g. o Francisco tende a gostar de comer hambúrgueres no local X e de ler livros sobre ficção científica) – e a Covid-19 pode constituir a sua grande oportunidade.

"A tecnologia, tal como a krisis, apresenta uma fantástica neutralidade: tanto pode tornar o mundo pós-Covid num mundo mais igualitário [...] como se pode tornar na morte da privacidade e no crescimento das desigualdades através do aproveitamento que algumas empresas farão dela"

Existem dois grandes atores que beneficiarão desse modelo e que terão nesta crise a sua oportunidade. Por um lado, os estados totalitários ou com bases democráticas pouco sólidas. Basta olhar para o que se passa na China em que aplicações de chat secretamente transportam aparelhos de controlo Covid-19 e que rapidamente tornam pessoas em cores de verde, amarelo ou vermelho. Ou para Singapura e para a utilização de serviços que impõem o controlo via Bluetooth dos contactos tidos pelos cidadãos. Nestes casos, a crise é aproveitada como oportunidade para estabelecer controlo e o modelo de capitalismo de vigilância serve propósitos totalitários de engenharia social. Sobre isto creio que já muito se escreveu e existe hoje alguma sensibilidade para os seus riscos. Por outro lado, e menos discutido, as grandes empresas tecnológicas aproveitarão esta crise para se sedimentarem como novos prestadores para além do Estado: pequenos governos mais flexíveis, mais próximos, que get things done.

Quando soube há uns dias que alguns artistas portugueses pediam ajuda à Google e ao Facebook, e não ao Estado português, neste tempo de pandemia, tive a confirmação da efetivação desta mudança radical. A legitimidade que atribuímos ao Estado enquanto prestador será rapidamente posta em causa por empresas que se movem sem fronteiras, com comunidades que ascendem aos mil milhões de utilizadores e onde só parcialmente existem as incomodativas restrições do respeito pelas liberdades fundamentais. Aproveitarão a ineficiência e lentidão do Estado moderno para se apresentarem como uma nova solução, mais rápida, mais eficaz, mais próxima.

Ao Rei-Filósofo sucederá o Rei-Engenheiro.

Este (pouco) admirável mundo novo não é, no entanto, inevitável. A tecnologia, tal como a krisis, apresenta uma fantástica neutralidade: tanto pode tornar o mundo pós-Covid num mundo mais igualitário, com maior acesso a informação, com tecnologias de combate às alterações climáticas e a doenças como a Malária ou o HIV, como se pode tornar na morte da privacidade e no crescimento das desigualdades através do aproveitamento que algumas empresas farão dela. A tecnologia é oportunidade; para o bem e para o mal. Preocupa-me, no entanto, que, enquanto tentamos sobreviver a uma pandemia, estejamos a escolher mais o segundo do que o primeiro. Receio que estejamos a entregar parte do nosso mundo a algumas poucas empresas que capitalizam nos nossos dados para vender a ideia de serviços gratuitos e lhes estejamos simultaneamente a conferir uma legitimidade semelhante aquela que uma vez (em tempos idos) conferimos aos Estados. A ingenuidade no momento da krisis é compreensível, mas perigosa. A perda temporária de direitos fundamentais, baseada em apps de todo o tipo, em face do imediatismo da doença, pode rapidamente tornar-se no novo status quo. A dependência das nossas rotinas nestes grandes conglomerados tecnológicos torna-nos presas fáceis do seu poder, tanto mais quando somos nós (os nossos dados) a matéria-prima do seu negócio.

Seja pela via dos Estados totalitários seja pela via das Big Tech, o que é certo é que existe um risco sério de entregarmos o nosso futuro a monopolistas que não possuem estruturas de representação que nos permitam mudar o curso das suas políticas. É imperativo por isso que, neste momento de krisis, sejamos nós, especialmente os mais jovens, a reclamar as nossas liberdades e a exigir aos nossos governos que garantam não apenas que o paciente sobrevive, mas sobretudo que volta livre.

*O Francisco de Abreu Duarte escreve segundo o antigo acordo ortográfico