1. Um juiz de um tribunal superior português transformou dois agressores em vítimas e uma agredida em culpada. Os termos em que o fez violam várias convenções internacionais, a Constituição Portuguesa, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. O acórdão de que foi relator é, além de chocante, criminoso.
A ministra da Justiça tentou serenar as reacções dizendo que “um caso não é o sistema”. Mas esse juiz tem acórdãos semelhantes no seu currículo de quase 30 anos; em outras vezes contou com a assinatura de outros juízes; e este ano foi júri na selecção de novos juízes. Ou seja, a toga serviu a moca repetidamente, com colaborações no passado e influência no futuro. Claro que a confiança no sistema fica afectada. Como combater os crimes que o juiz por um lado desculpa, por outro pratica? Caberá ao sistema provar que não é isto.
2. O caso deste juiz já encheu manchetes em Portugal. Para quem está fora, porém, valerá a pena recordar os detalhes:
Em Felgueiras, norte do país, um homem espanca uma mulher usando um pedaço de madeira com pregos, enquanto outro homem a segura. Os dois homens são, respectivamente, ex-marido e ex-amante da mulher. Uniram-se para a sequestrar e agredir depois de ela terminar a relação com ambos. A agressão só pára porque o agressor escorrega e a agredida consegue fugir, com ferimentos no corpo e na cara, que depois tem de ser cosida. O Tribunal de Felgueiras condena os dois homens a um ano e três meses de prisão, com pena suspensa. O Ministério Público recorre para o Tribunal da Relação do Porto, contra a suspensão da pena. O recurso é considerado improcedente pelo juiz Joaquim Neto de Moura num acórdão que diz o seguinte:
“Ora, o adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal [de 1886] punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando a sua mulher em adultério, nesse ato a matasse.” E o juiz conclui: “O adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e por isso vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher.”
Difícil acreditar que isto tenha sido assinado a 11 de Outubro de 2017, numa democracia laica. E que esteja co-assinado por uma mulher, a juíza desembargadora Maria Luísa Arantes. Não leu o que assinou? Não concorda mas assinou? Ou leu e concorda?
A divulgação deste acórdão traz à tona um anterior, de 2016, em que o mesmo juiz anulou uma pena, igualmente por violência doméstica, e envolvendo uma relação extra-conjugal. Também aí Neto de Moura recorreu à Bíblia: “Assim é o caminho de uma mulher adúltera: ela comeu e esfregou a boca, e disse: ‘Não cometi nenhum agravo’ (Provérbios 30:20). E, ainda, esta do sábio rei Salomão: ‘Quem comete adultério .. . é falto de boa motivação’ (Provérbios 6:32)”. Mais adiante decreta: “Uma mulher que comete adultério é uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral. Enfim, carece de probidade moral”. Como tal, “não surpreende que recorra ao embuste, à farsa, à mentira para esconder a sua deslealdade e isso pode passar pela imputação ao marido ou ao companheiro de maus tratos”.
Anos antes, Neto de Moura já absolvera um homem condenado por violência doméstica, que dera um murro e mordera a mulher quando ela tinha ao colo um bebé de nove dias. “É manifesto que essa conduta do arguido não tem a gravidade bastante para se poder afirmar que foi aviltada a dignidade pessoal da recorrente, mesmo tendo em conta que a assistente estava com o filho ao colo”, considerou o juiz. Esse acórdão ressalva ainda que o murro não foi forte, visto que o nariz ficou apenas “ligeiramente negro de lado”.
Assim absolvido do crime de violência doméstica, o arguido safou-se com uma multa de 350 euros.
3. Adultério não é crime. Pode ser uma circunstância levada em conta em determinados processos, mas não é crime. E distinguir entre adultério do homem e da mulher viola pelo menos três artigos da Constituição, o da igualdade, o da não discriminação e o da protecção legal contra a discriminação. Portanto, crime é um juiz escrever “o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou”. Pior: “Uma mulher que comete adultério é uma pessoa falsa, hipócrita, desonesta, desleal, fútil, imoral. Enfim, carece de probidade moral.” Considerações destas violam várias convenções internacionais, além de serem anti-constitucionais. Que um juiz as faça é especialmente grave. Que um juiz as faça para desculpar um crime violento é gravíssimo.
Para já não falar na irresponsabilidade de desculpar crimes de violência doméstica num país em que são agredidas 14 mulheres por dia, e mais de 450 foram assassinadas nos últimos 12 anos por maridos ou ex-maridos. Adultério não é crime, mas violência doméstica é um crime que mata.
O Conselho Superior da Magistratura anunciou um inquérito ao juiz, depois de o presidente da República ter lembrado que em Portugal vigora a Constituição de 1976. Entretanto, o presidente do Supremo, depois de sublinhar, e bem, a necessidade de “vigilância semântica”, criticou a “violência” das reacções contra o juiz. Mas, não fossem as reacções, o que aconteceria ao juiz Neto de Moura, e às futuras vítimas que ele transformaria em culpados e vice-versa? Se as reacções foram esmagadoras, isso deve ser lido com um sintoma de que algo correu mesmo mal. E as reacções dão força às mulheres para não se deixarem violentar, e transformar em culpadas. É a justiça que tem de merecer a confiança posta em causa. Cabe-lhe garantir que julgamentos destes não se repitam.
4. Antes de o caso do juiz vir à tona, já tinha pensado dedicar esta crónica ao machismo em 2017, a propósito da “#metoo (#eutambém) campanha internacional em curso contra assédio e abusos sexuais. Eu também, como todas as mulheres que conheço: todas temos histórias, de várias espécies, desde há muito. Perseguições, contactos anónimos, abusos físicos, constantes abusos verbais. Muitos abusadores não foram confrontados, muitos reagiram com violência ou cobardia. O abusador de rua, de transporte público, é frequentemente as duas coisas, um cobarde violento. E frequentemente as histórias de abusos continuam a ser comentadas com frases como: quem manda andar de mini-saia/decotada/com roupa justa, estava a pedi-las, pôs-se a jeito, depois não se queixe.
5. A internet deu voz a outro tipo de cobarde violento, frequentemente escondido atrás de um nome falso, ou escassa identificação. Esses espécimes praticam um largo espectro de machismo online. Abuso e assédio, claro, mas também agressão contínua a mulheres que opinam em público. Se o mundo das caixas de comentários é um triste vislumbre da Humanidade, os comentários em relação às mulheres são um caso à parte. Todas — todas — as mulheres que falam em público são alvo antes mesmo de dizerem seja o que for, pelo simples facto de serem mulheres. Apenas falarem, terem onde, haver quem as ouça, irrita muita gente. Há vinte anos eu não acreditaria que o machismo pudesse ter esta amplitude, quanto mais esta amplificação, mas cada vez parece pior. Esta é a sétima crónica semanal que faço para o SAPO24, e os comentários machistas aplicam-se a todos os temas, sem qualquer relação aparente. Posso falar de fogos e o comentário ser: “Mais uma lésbica de óculos armada aos cucos.” Uma frase que só por si seria um caso de estudo, na sua capacidade de aglomerar tantos preconceitos.
Mas este tipo de machismo não se esgota nas caixas de comentários, anónimos ou não. Vem também de quem pensa com os seus botões, ou comenta com quem está ao lado: pôs-se a jeito, não se queixe. As mulheres põem-se sempre a jeito para apanhar. Se não é a mini-saia são os temas polémicos: quem a mandou meter-se nisso, parece que gosta, depois não se queixe. Como noutras espécies de machismo incrustado, comentários destes também vêm de mulheres. O que todos de algum modo fazem, sejam homens ou mulheres, é legitimar o abuso e promover a auto-censura: meteu-se nisso, agora amanhe-se. Uma inversão tipo a abusada ser culpada do abuso. Como toda a espécie de domínio autoritário, o machismo conta com um exército de colaboradores por inversão, distorsão ou omissão. E assim passa entre os pingos da chuva.
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