No caso, o artigo era sobre a moda, pujante e crescente, do coliving, ou seja, da partilha de casa. E eu confesso-vos que quase me emocionei com o artigo, pela maneira como é mostrado o copo meio cheio das coisas, de como a actualidade é retratada romanticamente, dando-nos desta forma uma perspectiva muito mais bonita da vida, mesmo que já tenhamos 30 anos e o nosso salário só dê para pouco mais que alugar um beliche numa camarata em Odivelas e pagar o passe para ir todos os dias até ao cowork na Baixa, onde está sediada a incrível startup onde trabalhamos.
Se quisermos ser uns rabugentos pessimistas, poderíamos dizer que o capitalismo selvagem, cuja falta de escrúpulos (ou regulação, vá) alimenta o crescimento desenfreado da especulação imobiliária, aliado aos salários praticados, força as pessoas a viverem com amigos ou desconhecidos até à idade em que deviam estar a mandar sair de casa os próprios filhos. Mas o artigo mostra-nos o contrário. É moda, é uma opção feliz e voluntária.
Ao que parece, cada vez mais pessoas querem chegar ali à volta dos 30 anos e continuar em coliving, provavelmente coshowering com o Jorge, na banheira que está sempre entupida com novelos viscosos de cabelo da Soraia e da Alice, e quem sabe coshitting também com o Pedro e o Gonçalo. Por ser moda, claro, nunca para poupar água.
É engraçado como é uma moda que inclui, que é democrática, visto que os cada vez mais aderentes a si, tanto são publicitários, como artistas, engenheiros, médicos, enfermeiros, professores, advogados, designers, toda uma panóplia de ocupações, e até youtubers. Bem, estes últimos são os mais orgulhosos disso, talvez até um pouco culpados pela moda.
Mas imaginem chegar a casa, depois de um intenso dia de 8 horas (no mínimo dos mínimos) de trabalho no hospital, na agência ou no escritório, e como pesa o cansaço entranhado no corpo e na mente. Tira-se a senha para a casa-de-banho – o Jorge demora sempre meia hora (5 minutos a fazer cocó, 10 no Instagram e 15 a chorar enquanto pensa no salário que recebe, mesmo já trabalhando naquela empresa há 5 anos). Na cozinha, não dá para ir já fazer o jantar, nem sequer fazendo cocooking (ou cozinhing, se preferirem), porque está a Soraia a ocupar os bicos todos do fogão, a fazer um jantar para uns amigos que estão esparramados no único sofá da sala e a baralhar o algoritmo da Netflix. O Pedro e o Gonçalo estão no corredor a discutir exaltados sobre se a foto do Pizzi a beijar na boca o Bruno Fernandes é verdadeira, ou montagem do Insónias. Resta ir descansar um pouco para o quarto, que por acaso é ao lado do da Alice, que é pansexual e que está com a música aos berros para disfarçar os sons do cosexing que está a fazer com mais quatro pessoas.
Tudo isto, não é falta de privacidade, é só co(over)sharing. Portanto, o sonho de qualquer jovem adulto. Uma moda a que cada vez mais gente quer aderir por prazer, e não porque se pagasse uma renda sozinho sobrava dinheiro para meia sopa por dia e 100MB de net para o mês todo.
Gosto que a NiT consiga este branqueamento do capital, pegando num dos piores produtos do capitalismo actual, tornando-o em algo sexy e travestido. Só acho que era ligeiramente mais honesto, ao invés de coliving, chamar-lhe cosurviving.
P.S: Aguardamos os próximos artigos da NiT sobre, por exemplo, pessoas em condição de sem-abrigo, “A moda dos outdoor lovers”, ou até sobre a crise dos refugiados “Poderão ser estes os próximos medalhados olímpicos de natação?”.
Sugestões mais ou menos culturais que, no caso de não valerem a pena, vos permitem vir insultar-me e cobrar-me uma jola:
- De Olhos Fixos no Sol: Estou maravilhado com este livro do Irvin D. Yalom.
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