A ideia não podia ser mais simples, mas à época era absolutamente inovadora: uma aplicação digital que liga quem quer um transporte, com o motorista mais próximo. O pagamento feito automaticamente através da aplicação e essa quantia dividida entre o transportador e a Uber (75% - 25%, mais ou menos), oficializavam a boleia.
O “modelo de negócio Uber” viria a ser usado por empresas de muitas outras áreas, a mais famosa das quais talvez seja a Airbnb. Hoje, o processo de ligar consumidores e fornecedores através de software tornou-se corriqueiro. Até as lojas físicas o usam para vender os seus produtos ao domicílio. Para não falar em mega-empresas como a Amazon, que fazem exactamente o mesmo, a uma escala cósmica. Como alguém lembrou, com uma certa perplexidade, na chamada “gig economy” (“economia efémera”) a maior transportadora, a Uber, não possui viaturas; e a maior hoteleira, a Airbnb, não é proprietária de alojamentos!
Esta ideia simples transformou-se num complexo de serviços que incluem transporte de objectos e entrega de refeições, entre outros, e espalhou-se pelo mundo inteiro com a rapidez dum Mercedes numa auto-estrada sem limite de velocidade: em 2021, a empresa estava disponível em mais de 900 cidades em todos os continentes, tinha associado mais de cinco milhões de condutores e fazia uma média de 17,4 milhões de viagens por dia.
O conceito Uber foi congeminado por três amigos, Garrett Camp, Oscar Salazar e Conrad Whelan. Travis Kalanick, que se tornaria o rosto da empresa, juntou-se logo a seguir. Ao princípio, só disponibilizava limousines, 50% mais caras do que um carro normal, mas a partir de 2012 introduziu o UberX, carros de gama média a preços mais competitivos que os táxis. Em 2014 lançou o Uber Eats, dedicando-se à entrega de refeições. E, em 2019, tornou-se uma empresa pública, o que nos Estados Unidos quer dizer cotada na bolsa. Nos anos seguintes, à medida que se espalhava pelo mundo, foi fazendo aquisições, fusões e associações. E houve despedimentos, expansões, crises e tudo o mais por que pode passar uma empresa que, não tendo ferramentas físicas, precisa de centenas de funcionários para tratar das questões informáticas.
Como é sabido, a Uber foi recebida com a maior hostilidade pelos taxistas, ajudados pelo facto de não haver legislação aplicável ao modelo. Em alguns países, houve cenas de pancadaria e carros vandalizados, noutros o serviço foi simplesmente proibido. Essa luta parecia favorecer a Uber, vista como uma empresa inovadora que enfrentava interesses instalados. Aliás, segundo os documentos agora publicados pelo denunciante, Mark MacGann (já vamos a ele), Travis Kalanick, em vez de considerar os problemas ameaçadores, encarava-os como uma promoção da marca: “Se tivermos 50 mil motoristas eles não podem fazer nada, nem farão. Acho que vale a pena. A violência garante o sucesso.”. Lá dizia o outro, não há má publicidade ...
Kalanick teve de deixar a empresa em 2017, devido a escândalos de carácter sexual – parece que as funcionárias eram assediadas de várias maneiras – e actualmente, a Uber tenta atribuir-lhe muitas das práticas que entretanto foram aparecendo.
Essas práticas foram agora denunciadas por MacGann ao “The Guardian” e mostram os métodos que a Uber usava para entrar no mercado de um país.
Não se pode duvidar de MacGan; lobista de carreira, trabalhou na Uber entre 2014 e 2016, para os mercados da Europa, Médio Oriente e África, precisamente na altura em que tentava expandir-se por toda a parte, e partilhou com os jornalistas mais de 120 mil documentos, entre emails, minutas de reuniões e gravações de conversas. Trouxe consigo duas malas cheias de computadores portáteis, discos rígidos, iPhones, livros de anotações e documentos diversos.
Podemos discutir a ética de MacGann – segundo ele, o que o levou a fazer as denúncias foi uma “necessidade de mostrar a verdade”, um argumento que não condiz com a profissão de lobista; mas não podemos pôr em causa as provas. São tantas que o “The Guardian” resolveu partilhá-las com 180 jornalistas em 29 países, incluindo órgãos como a BBC, o “Washington Post” e o “Le Monde”. Um verdadeiro Uberleaks.
Qual é, então, a história? A história, são os métodos pouco ortodoxos que a Uber usou para entrar num país. Primeiro, criava uma infraestrutura que controlasse problemas legais: um escritório nacional tinha um “botão para desligar” que o isolava da rede global, impedindo que uma investigação mostrasse o que se passava noutros países, alastrando a ameaça.
Depois, em vez de pedir autorização legal para funcionar, começava a operar primeiro e esperava as reacções adversas, legais ou de rua, para alegar que, sendo um negócio pioneiro, não tinha como se legalizar. Mas, entretanto, tratava de contratar figuras políticas de peso que a ajudassem junto das instituições legais, fossem legislativas, executivas ou judiciais.
E aqui aparecem figuras realmente pesadas, como Emmanuel Macron, na época ministro da Economia francês, Peter Mandelson, que ajudou junto dos oligarcas/decisores russos, e George Osborne, ministro das Finanças de Cameron. A lista inclui políticos europeus (Alemanha, Espanha, Finlândia, Hungria...), norte-americanos, canadianos e indianos.
O que dissemos é resumido pelo jornalista Benedict Evans no Twitter: “A estratégia, pública e confessa, era lançar o serviço onde era ilegal e depois fazer pressão nos políticos para obter aprovação, em vez de fazer lobi primeiro, pois achava que o lobi não resultaria se as pessoas não vissem e testassem o serviço, primeiro.”
Podemos considerar que se trata apenas de mais uma estratégia empresarial do mundo capitalista, mas não podemos ignorar os nomes dos políticos que participaram neste esquema, alguns sabendo perfeitamente o que estavam a fazer – caso de Mandelson, por exemplo, que usou os seus duvidosos contactos com os russos.
E o que diz a Uber sobre tudo isto? Diz que a responsabilidade é de Kalanick: “Há cinco anos, esses erros levaram a uma das mais famigeradas responsabilizações na história empresarial da América do Norte. Essa responsabilização levou a um enorme escrutínio público, muitos processos legais, muitas investigações governamentais, e ao despedimento de vários gestores de topo. Foi exactamente por isso que a Uber contratou um novo administrador delegado, Dara Khosrowshahi, encarregado de mudar todos os aspectos do modo como a empresa opera.”
O grande argumento da Uber é que infringiu as regras porque as regras estavam erradas. A legislação dos táxis foi feita noutros tempos e não permitia ajustamentos. Daí que a técnica fosse entrar primeiro e legalizar depois.
Quanto aos políticos visados, ainda não se pronunciaram. Apenas Macron comentou – para dizer que não lamenta ter ajudado a empresa. Se calhar tem razão, faz tudo parte do sistema capitalista – um sistema que, à falta de uma alternativa possível ou que demonstre viabilidade, é ainda assim, o melhor que temos, senão o único.
Então, a conclusão é bastante inconclusiva: a Uber é má, mas andar de Uber é bom. Frequentemente mais barato do que um táxi, mais expedito, mais fácil de pagar. (Aliás, já muitos taxistas trabalham também para a Uber...). Além de ter assegurado a sobrevivência de muitos imigrantes, trabalhadores desempregados ou ainda pouco qualificados.
Se fôssemos medir a qualidade ética das empresas que usamos, provavelmente não usaríamos nenhuma.
Estarei a ser terrivelmente cínico, ou singelamente pragmático?
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