Não apenas pela nunca antes sentida canícula na costa canadiana do Pacífico. A contenção, gerada por mágoa e mesmo vergonha, veio da continuada revelação de atroz genocídio cultural de crianças indígenas.
Precisamente no dia nacional canadiano deste ano em que várias igrejas cristãs, pelo menos 12, foram vandalizadas em cidades canadianas. Uma estátua de João Paulo II foi derrubada na alameda de Fort Simpson, território do noroeste indígena que aquele papa tinha visitado em setembro de 1984. O número 751, pintado com spray vermelho, apareceu inscrito em tamanho grande na porta de várias igrejas e também sobre imagens de santos.
Este número 751 corresponde ao número de crianças indígenas sem qualquer identificação — algumas dessas crianças com menos de três anos de idade — cujos restos mortais foram encontrados em sepulturas anónimas junto a um internato (eufemisticamente chamado de escola residencial) gerido por padres e freiras. Semanas antes, junto a outro internato, tinham sido encontrados, com o apoio de georadares, os restos de mais 215 crianças, todas também indígenas. Dias antes, outras 182. As primeiras macabras descobertas levaram às buscas que continuam em redor de outros internatos.
Esta brutal história escondida revela o abuso sistemático e generalizado de povos indígenas. Não vem de tempos medievais. Aconteceu no século XX.
Desde pelo menos 1891 até aos anos 1990, as autoridades canadianas arrancaram da comunidade familiar, pela força da imposição, mais de 150 mil crianças indígenas, ameríndias e inuits, para serem internadas nesses colégios residenciais entregues a religiosos cristãos. Foram criados, no início do século XX, dezenas de internatos. Eram 139 em 1990.
A motivação para esses internatos era a de cortar totalmente a ligação dessas crianças indígenas com a família, a língua e a cultura em que nasceram. Passavam a ter nome europeu, eram submetidas a rígida educação religiosa e proibidas de falar na língua autóctone ou de cultivar qualquer prática indígena.
Há evidência de punições brutais, torturas e abusos sexuais, físicos e emocionais nesses internatos que funcionaram como campos de concentração para assimilação dessas crianças pela cultura dominante.
As condições de vida nos internatos eram terríveis: com muito escasso financiamento, a alimentação era insuficiente e culturalmente desajustada para menores indígenas obrigados a duro trabalho físico. A falta de cuidados de saúde levou à morte de muitas dessas crianças. Há notícia de vários surtos fatais de tuberculose.
As crianças mortas tinham a existência apagada ao serem enterradas. Estão agora a ser descobertas.
Muita gente no Canadá está consternada, envergonhada por este passado recente. O primeiro-ministro Justin Trudeau não hesita ao falar de "genocídio". Trudeau declarou-se "com o coração destroçado" e num comunicado oficial escreveu que "nenhuma criança deveria alguma vez ter sido arrancada aos seus familiares e comunidades, roubando-lhes a língua, a cultura e a identidade; nem deveria ter vivido até aos últimos momentos com medo e sem poder ver os entes queridos; e nenhuma família poderia ter sido privada da alegria de ver crescer os seus filhos".
O primeiro-ministro Trudeau promete fazer tudo para que tudo dessas atrocidades seja investigado e revelado.
A justiça está a tratar as sepulturas como "lugar de crime".
O último desses internatos fechou em 1995. Alguns administradores, dirigentes, professores e vigilantes ainda estão vivos. Estão a ser muito criticados pelo encobrimento e, agora, vão ter de responder à justiça.
As comunidades indígenas estão a denunciar que muitas crianças foram mortas à pancada nesses internatos religiosos.
O arcebispo de Vancouver, Michael Miller, assume que há o mal de "ter sido praticada uma orientação política colonialista, devastadora para as crianças, os pais e as comunidades". O papa exprimiu "dor", mas multiplicam-se as exigências de pedido de desculpa e intenção de reparação por parte do topo da igreja católica, da qual se reivindicam os responsáveis pelos internatos.
Um anterior ministro da justiça, Irwin Cottler, reconhece que este é "o mais abominável ato racista que fica como vergonha na história do Canadá".
Andrew Coyne escreve num editorial do influente diário canadiano The Globe and Mail que "estas práticas não poderiam ter sido sustentadas todos estes anos sem o apoio tácito, ou pelo menos aquiescência, de primeiros-ministros, membros do Parlamento, funcionários públicos e, em última instância, da população em geral. A vergonha disso — a vergonha imensa e indescritível — deve ser usada, não apenas pelas pessoas mais diretamente responsáveis, mas pela nação canadiana".
Há alguns milhares de sobreviventes no Canadá atual dessas "escolas residenciais". E dezenas de milhar de descendentes que refletem essa assimilação forçada. Alguns há muito denunciavam o "genocídio cultural". Muitos relatam danos irreparáveis, do alcoolismo à tendência para alta conflitualidade e depressões graves.
O conjunto das 600 nações ameríndias e inuits do Canadá representa cerca de 1,8 milhões de pessoas, uns 5% dos 38 milhões que são a população canadiana.
Entre os povos indígenas está lançado o movimento Idle, no More (a passividade, acabou). Reivindicam direitos para as reservas índias. Exigem que os 97 lagos em território índio sejam conservados pela direção dos povos indígenas. Reclamam que o estado garanta o acesso à água potável, que só chega a 10% daquela população. Também reivindicam apoio para programas específicos de alfabetização. E, sobretudo, respeito.
A moral coletiva do Canadá está tão em choque que neste 1 de Julho não houve festa no dia nacional. O país também está confrontado com uma realidade atual: o profundo racismo generalizado perante o povo indígena. Estão a ser mobilizados esforços para que, a partir desta constatação sejam ativados esforços para promover a reconciliação. O primeiro-ministro Trudeau declara esta opção uma prioridade e pôs-se à cabeça do movimento.
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