Depois da crónica que escrevi na semana passada, voltei a encarar a caixinha de opiniões anexa, desta vez por engano. Tenho uma relação esquiva com as redes sociais (não por sobranceria nem cobardia, só mesmo preguiça), e por isso grande parte do conteúdo na minha página profissional de Facebook é colocado e escrito pelo meu manager, que se revelou um verdadeiro e diligente ghost-writer. Quando ele usou a página para divulgar o meu texto anterior no SAPO24, tomou a iniciativa de acompanhá-lo duma imagem do filme “American History X” (em Portugal, “América Proibida”). Foi por isso que eu, distraído com a fotografia que ilustrava aquela publicação, acabei por clicar no link que me reconduziu ao artigo. Ao fundo lá estava ela: a caixa de comentários. Já vamos aí.
Primeiro, a acertada evocação do “América Proibida”. Já passaram mais de 15 anos desde a única vez que o vi, mas consigo recordar-me dum par de coisas essenciais que, convenientemente, assentam na minha argumentação da semana passada. O que me deixou memórias mais vivas do filme foi, sobretudo, o tratamento das questões ideológicas: primeiro, lembro-me de algum simplismo nos retratos sociais, convidando-nos a perceber os ambientes que favoreciam o surgimento de grupos neo-nazis. Sou a favor que se procure entender os fenómenos que desejamos erradicar, mas quando há simplismo o tiro pode sair pela culatra. Não poucas vezes (e a questão do radicalismo islâmico vem sendo fértil nisso) temos assistido à relativização de males absolutos, ou à vitimização dos perpetradores. Quando ocorre tal atenuação mediática da imagem do Mal, em alguns casos cria-se um efeito perverso: permitimos que quem está na outra barricada se radicalize. Assim atenua-se também o Bem. Quando ouço que um “bom nazi” é “um nazi morto”, sinto o Bem atenuado. Um “bom nazi”, tal como um “bom terrorista” são só uma impossibilidade.
Outro aspecto que me ficou do filme tem que ver com o próprio papel da ideologia. Embora seja central na narrativa, paira a sensação de que o neo-nazismo não constitui o tema maior. É antes o subterfúgio para um desfecho fatal, quase como os prenúncios trágicos gregos. Na verdade, o cerne do filme é o drama familiar; a moral ideológica secundariza-se. Toda a gente que viu vai-se lembrar do “América Proibida” como “aquele filme dos neo-nazis” (o meu manager/ghost-writer comprova-o), e certamente saberão citar algumas das cenas mais violentas. Mas, para a identidade do filme, o que vale é o sangue no laço familiar. O sangue derramado pela brutalidade é mero acessório.
O que na semana passada me motivou a escrever sobre a marcha de Charlottesville foi um presidente, qual argumentista, que decidiu que o nazismo podia ser um acessório na história, e não o centro. Um presidente, qual cineasta, a julgar-se no direito de particularizar casos quando o Mal envolvido é universal. Um presidente simplista a ser simplório, legalista e arrogante como um fariseu, a deter-se em facções num dia em que o abominável marchou unificado. Escrevi um artigo que era mais de condenação que de opinião. Assumo que foi pouco o que aprofundei. Quando o Mal está tão claramente à superfície, de que vale apontar para as profundezas do fosso?
Censurei um presidente odioso pela frouxidão que demonstrou em censurar ideologias do ódio. Na minha cabeça não rapada, senti-me a escrever a crónica menos polémica de sempre – e foi assim que a cabeça se sentiu até que um descuido a colocou frente a frente com a caixa de comentários. Para ser sincero, eram poucas mensagens, e não me deparei com nada de absolutamente excessivo na linguagem, nem incitador à violência com o cronista, nem sequer de grande descuido gramatical — ou seja, no que às caixas de comentários diz respeito, já passei por muito mais escaldantes. A minha surpresa não se devia, portanto, a qualquer intensidade no contraditório. Contudo, para um texto que basicamente condenava ideologias de ódio, qualquer contraditório não é de surpreender?
Vou aqui responder com brevidade a um punhado de comentários. Outros mais abomináveis desapareceram entretanto, mas com esses até me iria reservar ao silêncio — para mim, toda a ideologia de supremacia racial, ou de ódio militante, está encharcada de ignorância e/ou maldade; teria dificuldade em encontrar um léxico que nos fosse comum e permitisse comunicar. Qualquer negacionista do Holocausto está ao nível dum flat-earther (as pessoas que ainda hoje defendem que o planeta Terra é plano), mas com requintes de malvadez a exponenciar a burrice. Qualquer admirador do Holocausto está ao nível de lixo (num rating ainda mais excrementoso que o da Moody’s).
A primeira pessoa que comentou afirmava apenas “Força extrema direita, força trump”. De uma forma sucinta, reforçava a minha tese da impossibilidade em dissociar-se Trump do extremismo execrável que marchou em Charlottesville. Pleno séc. XXI, bandeiras nazis a desfilarem sem complexos, e ainda há um português absurdo a gritar “força! força!”. Que me perdoe se foi só um erro de cedilhas no autocorrector do telefone.
Noutros comentários, percebia-se com clareza que o meu texto não tinha sido lido. Foi o emprego da palavra “muro” no título da crónica quem acabou por chamar os comentaristas. Assim se atestou uma analogia canídea: alguns farejam toda e qualquer notícia onde possam cascar em imigrantes e migrantes; outros salivam pavlovianamente quando qualquer palavra que lhes passa à frente dos olhos (como “muro”) sugere o tema da imigração. Embora eu me reserve a outra opinião, consigo ter respeito por alguns argumentos mais cautelosos e fechados na questão dos refugiados e imigrantes. Mas o que esta cegueira e sofreguidão nos comentários provam é que a aversão se automatizou. Os desagradados tornam-se missionários, e passam a usar qualquer fórum público para uma reprovação obstinada da ameaça estrangeira. Paira no ar o fedor da xenofobia. Essas pessoas que vieram opinar, mesmo ignorando que o meu texto condenava um ódio antigo, saíram de lá com uma carapuça de tamanho exacto.
Não só na minha caixa de comentários daquele dia, como noutras que fui depois espreitar (sem sobranceria, sem cobardia e já sem preguiça) verifiquei um padrão de impudências argumentativas. Passa por associarem-me a ideologias que eu nunca defendi. Ou, então, acusarem-me de me abster na condenação dos alhos quando eu, pura e simplesmente, estava a escrever sobre bugalhos. Vou simular um exemplo para me fazer entender: imaginem que publico um texto a criticar negativamente os livros do José Rodrigues dos Santos, e agora imaginem que os comentadores vêm insultar-me e acusar-me de desonestidade só porque “os discos do Kenny G são piores” ou “as touradas é que deviam merecer repúdio” – isto sem que eu tivesse feito qualquer alusão, e muito menos elogio, quer ao saxofonista quer à festa brava.
Este último tipo de argumentação tem especial gravidade quando dirigido à minha crónica passada, pois faz crer que eu perco autoridade para demonizar o nazismo se não alargar o espectro das críticas. Brincamos? Desde quando é que o nazismo padeceu de contraponto para ser ampla e liminarmente demonizável? Para além disso — já devia estar à espera — arremessa-se a velha ladainha de que pior ou igual ao nazismo é o comunismo. Muito embora eu não morra de amores pelo comunismo (bem pelo contrário — até já aqui dediquei um texto sobre isso), e tenha consciência do número catastrófico de pessoas que vitimou, recuso-me a equiparar comunismo e nazismo. Foram líderes comunistas, não a ideologia, os verdadeiros responsáveis pelo massacre de milhões de pessoas; já a ideologia nazi é indissociável de massacres. Uma das coisas que menos gosto no comunismo, e que a História tem infelizmente confirmado, é o facto de ser uma ideologia fértil em dar poder e impunidade a homens maus; o nazismo é o Mal por si só. O comunismo tem dogmas, maquiavelismos e entrelinhas que, nas mãos erradas, potenciam crimes odiosos; o nazismo já se traduz no erro e no ódio potenciados. Passem um dia com o mais importante dos nossos comunistas, outro com o mais insignificante dos nossos neo-nazis, e depois quero ver se têm o desplante de dizer que o camarada Jerónimo e o Zé Skin são farinha do mesmo saco. Num há farinha de trigo, noutro farinha de carbúnculo.
Para o fim não reservo conclusões. Quando muito reservam-me comentários — a probabilidade de vir a lê-los é que não é famosa. Mas, asseguro, não é por sobranceria...
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