A catástrofe de Valência está a pôr à prova os protocolos, mecanismos e recursos para prevenir primeiro e socorrer depois. Embora este seja o tempo tragicamente com desespero pelo pescoço em que a urgência absoluta é a união de todos para ajudar, há problemas para discutir depois.
Mas, desgraçadamente, o confronto político em Espanha está tão envenenado, tão carregado de ódios, que vale tudo para, apesar da magnitude da catástrofe, apesar do respeito devido aos mortos por sepultar e aos corpos ainda por resgatar, alguns dos principais chefes políticos, em vez de colaborarem na coordenação da ajuda, já estão, em modo oportunista, a servir-se do choque emocional da catástrofe para fazer campanha política e atacar o adversário.
As hostilidades foram abertas por Alberto Núñez Feijóo, líder do PP, um político que não suporta o facto de, apesar de ter ganho as eleições gerais, o governo de Espanha ser comandado pelo rival socialista Pedro Sánchez graças a uma coligação de esquerdas que muitos consideram contranatura por envolver partidos independentistas. Feijóo assume o papel de zangado na liderança da oposição espanhola. Já tinha sido assim quando lhe tocou ser oposição na Galiza. Xosé Hermida, no El País, lembra-nos que Feijóo é dado à tática de exploração do desastre. Em 2006, a Galiza foi devastada por tremendos incêndios florestais; Feijóo era o líder da oposição ao governo galego, então coligação entre socialistas e nacionalistas BNG; morreram queimadas duas senhoras idosas logo nas primeiras horas de fogo. Feijóo usou os microfones dos media para fazer campanha: “Connosco no governo, não haveria mortes pelo fogo”.
Agora, 18 anos depois, é o apocalipse com o dilúvio em Valência. Espanha é governada a partir de Madrid por um governo de esquerdas (PSOE e SUMAR) liderado pelo socialista Sánchez. Valência é uma autonomia, com governo próprio (a Generalitat, tal como na Catalunha), que nos últimos anos virou à direita e que é liderada pelo PP Carlos Mazón.
Há uma imagem com bonito valor simbólico logo nas primeiras horas do socorro aos desesperados de agora: é o abraço, carregado de comoção, entre o líder do governo de Espanha, o socialista Sánchez, e o líder do governo de Valência, o popular Mázon. Mas, ao mesmo tempo, Feijóo vestia o fato de líder da oposição para criticar a gestão da crise pelo governo central (das esquerdas) e responsabilizá-lo pelo desastre.
Os factos contrariam o lastimável oportunismo de Feijóo, ao usar a linguagem da lama quando desgraçadamente ainda há lama por todo o lado.
É inexplicável que os alertas vermelhos e instruções para tomada de abrigo tenham demorado tanto tempo para chegar à população nas zonas de crise.
A AEMET, agência estatal meteorológica espanhola, alertou, logo no sábado, para a aproximação de um fenómeno meteorológico grave. Na terça-feira de dilúvio, logo às 7 da manhã, a AEMET emitiu alerta vermelho para temporal sério. Compete à administração da Comunidade Valenciana, presidida pelo PP Carlos Mazón, enviar para todos os telemóveis no território essa mensagem de alerta geral. Não só ficou por enviar como, às 10 da manhã, quando às bátegas torrenciais começaram, o presidente Carlos Mazón, num ato público em Valência, pedia à população tranquilidade e acrescentava que o temporal “passaria por volta das 6 da tarde”. Afinal, foi às 6 da tarde que tudo piorou em dilúvio que pôs ruas e estradas em imparável curso de rios com torrente furiosa que arrastou carcaças navegantes de automóveis e até camiões. É a essa hora que foram emitidos os SMS de máximo alerta, mas muitos não chegaram aos destinatários porque a quebra da energia elétrica e o derrube de postos com repetidores de sinal já tinha feito colapsar a rede.
Muitos caminhos de regresso a casa ao começo da noite transformaram-se em estradas da morte. Os relatos desse pavor são estremecedores.
Constata-se, enquanto é levantada a maré de ataques políticos, a boa cooperação entre o governo central e o governo valenciano para o socorro. A União Europeia está a ajudar.
O rei Felipe VI compareceu como estadista, com fato e gravata de cor preta de luto, expressou solidariedade com quem está a sofrer e pediu a unidade entre todos para superar esta dramática situação.
Por lástima, a política em Espanha está tão inundada de ódio que tudo vale.
Quando o pesadelo sair da fase de urgências no socorro, há muito para discutir.
O endosso de pequenas culpas vai passar pela acusação das esquerdas ao governo da direita em Valência por ter decidido a extinção, por pressão dos ultras do VOX, do serviço autonómico de coordenação de respostas em emergência.
Mas a questão de fundo é a que alguns Gonçalos Ribeiro Telles de Espanha alertam há muito: a falta de planeamento e o desastre no ordenamento do território. O que antes era terra agrícola que absorvia as chuvadas agora é território impermeável coberto por asfalto e arranha-céus.
Esta será a discussão que importa, como resolver o problema, em vez de atirar culpas no jogo político. Em Espanha, como em Portugal e em tantos outros países, falta cuidar as vulnerabilidades agravadas pela evidência de clima em alteração que urge combater. É preciso, com prioridade sobre a questão da escassez de habitação (a tratar por outras formas) proteger o território oxigenando-o com espaços verdes e naturais. É preciso, com coragem, tratar o ordenamento do território, aliviar a aglomeração demográfica e ativar redes harmoniosas de mobilidade.
A desgraça destes dias em Valência, com as imagens de montanhas de carcaças de carros destroçados, mostra-nos como a mobilidade não está ainda a propiciar boa alternativa ao transporte privado.
Estas questões do ordenamento, também da prevenção e até da educação são os debates de fundo que fazem falta para a fase seguinte ao socorro. Discutir os diferentes pontos de vista, sem meter o ódio em direção a quem pensa diferente.
Este apocalipse em Valência vale como alerta para todos nós. Mas a memória lembra-nos que se fala nas alterações climáticas quando ocorre uma tragédia, dias depois já ninguém liga.
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