Comecei assim um texto que tem menos de dois anos. Podia ter começado de outra forma, porque essa primeira entrevista foi rica em detalhes. E sim, são os detalhes que fazem muitas vezes as grandes diferenças.
Foi uma entrevista realizada há mais de 20 anos e cujo trabalho se traduziu numa capa da revista Exame sobre o império Sonae. Estava marcada para as 14 horas, Belmiro de Azevedo chegou com algum atraso e não houve cafés nem aperitivos. Direto às questões. Direto com um pequeno desvio. Sendo eu ainda uma novata - afinal tinha pouco mais de cinco anos de profissão e ao serviço do Público, de onde tinha acabado de sair - o senhor engenheiro, assim era tratado, achou por bem perguntar-me porque me tinha vindo embora do jornal que fundou. E eu achei por bem responder-lhe a verdade: porque era muito feliz no Público e isso poderia inibir-me de tentar outras coisas e estava na altura certa para tentar outras coisas. Não perdeu tempo na resposta. Devia ter vindo falar comigo, disse-me. Engoli em seco, fiz o sorriso diplomático, não devo ter conseguido mais que arregalar os olhos para expressar o espanto da pergunta que não saía. Se tivesse vindo falar comigo e me dissesse isso, de certeza que teríamos encontrado outras coisas que pudesse fazer sem sair do grupo. A famosa carreira em ziguezague na Sonae, foi assim que ouvi falar dela a primeira vez. Claro que podiam ser apenas palavras de circunstância, mas mesmo na pele da novata que na altura era, algo me disse que não seria.
Belmiro de Azevedo regressava então ao “grupo”. À Sonae, o grupo que fundou, depois de um afastamento provocado por uma doença. Não foram tempos felizes, nem para ele que lutou contra uma doença, nem para o grupo que viu o seu negócio fundador, a indústria, afundar-se num contexto de concorrência internacional que poderia ter ditado o fim daquela área de negócio. Sonae, uma sigla que significa Sociedade Nacional de Aglomerados e Estratificados. Que significa indústria, o negócio que, antes da Bolsa, dos hipermercados, das telecomunicações, fez da empresa aquilo que hoje é.
Não ditou, pelo contrário. Mas, nessa altura, Belmiro ainda não sabia. A única coisa que sabia era o que pensava fazer e como olhava para a estratégia do grupo. “Não somos nómadas, não levantamos a tenda. Estamos na indústria para ficar e aqui vamos ficar”. E ficaram, e a Sonae deu a volta.
Passar-se-iam mais meia dúzia de anos até voltar a entrevistá-lo. Na altura, para um livro que nunca viu a luz do dia sobre “a história da internet”, uma história contada à boleia do Clix, empresa e portal que faziam parte de uma nova geração de empresas do grupo Sonae, naquela que era então descrita como a nova economia ou a primeira febre dotcom. Não senti no senhor engenheiro a mesma paixão pelas coisas da net que tinha tão veementemente demonstrado pelas coisas da indústria e também pelas coisas da distribuição. Pode ter sido impressão minha, mas o patrão da Sonae gostava das coisas mais tangíveis ou mesmo abrasivas, como ele próprio.
Vão passar mais uns anos e, em fevereiro de 2006, a Sonae enche os jornais com a OPA à PT. Seguir-se-á um ano intenso que, por várias razões, os estilhaços ainda hoje fazem parte da agenda mediática, política e económica. Um ano intenso que, na realidade, traçou o destino a vários temas-chave na década que seguiria. Há uma memória que é impossível não relembrar: a enorme surpresa do anúncio. Belmiro, o empresário que sabe como causar uma impressão ou, como tantas vezes foi descrito, usando as suas próprias palavras, o homem que não abre portas, deita-as abaixo.
Belmiro de Azevedo morreu hoje, aos 79 anos. Deixa mais que uma fortuna, um grupo empresarial com uma cultura própria que, goste-se ou não, é diferente e cultiva essa diferença. Por estes dias, vamos ouvir várias pessoas dizer que já não se fazem homens assim. Não gosto de generalizações, mas por hoje vou embarcar nesta.
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