O que aborrece realmente quando estas discussões surgem é que tudo se torna um retrato a preto e branco. Ou somos uns bota de elástico que não querem saber da cultura, ou uns burgueses da esquerda caviar que não querem saber como se pagam as contas. Aparentemente, parece impossível encontrar na mesma pessoa a vontade de manter ‘espaços míticos’ com a preocupação de que sejam autosuficientes e bem geridos.

Que é mais ou menos a mesma razão pela qual uma mesma pessoa tem excelentes qualidades de gestão se trabalhar para um empregador privado, mas torna-se automaticamente um gestor perdulário se o empregador for o Estado.

A esta altura, já estão alguns leitores desse lado a bufar de impaciência com ‘mais uma’ que vem defender as discotecas do Cais do Sodré e apelar ao erário público.

Sosseguem-se esses.

Sou pouco de petições inflamadas e temo, cada vez mais, os movimentos que se dizem ‘orgânicos’. Tenho por convicção – e por experiência – que é sempre mais fácil influenciar uma turba do que uma mente esclarecida ou disponível para se esclarecer.

A questão é outra. Ou são duas questões.

A primeira, sobre o turismo e como vamos gerir algo de bom que está a acontecer na nossa economia e impedir que se transforme em algo de mau que pode acontecer no nosso país.

A segunda é sobre essa espécie de nojo que algumas pessoas têm em relação à utilização de dinheiros públicos em cultura ou simples promoção de espaços de ócio (por oposição aos de negócio).

Uma das razões porque cidades como Lisboa e o Porto são hoje coqueluches dos roteiros internacionais são os seus costumes. Por costumes entendem-se coisas tão diferentes como sítios onde vamos petiscar, bancos onde nos sentamos a olhar para o rio e ruas assumidamente estreitas e antigas onde há tascas e mercearias. Sim, desta lista fazem também parte discotecas old school onde a mesma playlist corre desde os anos 80 e não faz mal.

Este ‘pitoresco’ não é inventado – é real, ou tem sido real, e é também por causa dele que uma nova geração de turistas, diferentes na origem, na idade e nos hábitos, sente curiosidade de conhecer Lisboa. Alguém lhes contou, alguém lhes disse, que naquela cidade que também tem o fado, os pastéis de Belém e os Jerónimos, há disto.

As pessoas que fazem a cidade ‘pitoresca’ também são reais, e vivem cá. Algumas à distância do metro do Cais do Sodré, outras a precisar de trocar de linhas de transporte mais vezes. Mas todas convergem nas mesma cidade, usam-na e dão-lhe vida.

A razão pela qual as discotecas do Cais do Sodré são importantes não é pelas discotecas do Cais do Sodré. As discotecas são importantes para pensarmos se queremos uma cidade cheia de hóteis para acomodar os turistas que vêm a Lisboa para ver essa cidade que vive em ruas onde existem discotecas que passam a mesma playlist há 40 anos.

As discotecas são importantes para ter ‘pensamento público’ sobre que cidade queremos que Lisboa seja – se aquela que apaixona pessoas do mundo inteiro ou se uma cidade artificial para inglês ver.

As discotecas são importantes para mudar mentalidades – de inquilinos e senhorios. Inquilinos que têm um bom negócio podem pagar uma boa renda. Senhorios que descuraram prédios e que foram agora subitamente acometidos de uma vontade empreendedora têm de negociar e não de impor.

Fica sempre bem invocar Churchill nos grandes temas fracturantes e seria uma pena não o fazer aqui. Em vez de citações do estadista, fica uma análise do jornal conservador inglês "The Telegraph" à frase muito usada sobre os cortes na cultura. “Se o fizermos, estamos a lutar para quê?” - teria sido esta a frase de Churchill em plena II Guerra Mundial. Vamos assumir que não terá sido exactamente assim, com o país a ser bombardeado e os hospitais a receberem feridos a toda a hora. Mas, o que para o "The Telegraph" é uma ‘desmistificação’, na realidade é apenas a confirmação de que, mesmo na guerra, preservar o que faz a identidade de um país foi uma preocupação de Winston Churchill. “None must go”.

E para acabar no mesmo espírito revivalista, nada como fazê-lo ao som da música. Não se preocupem, não é a mesma playlist que há 40 anos passa no Jamaica. Esta é no Kit Kat Club e é ainda mais vintage. Come to the Cabaret old bum, come to the Cabaret.

Tenham um bom fim de semana!

OUTRAS SUGESTÕES DE LEITURA

Depois do que escrevi, esta é de recomendação obrigatória. Pelo retrato, pela cor e pela ironia poética do Márcio Candoso a falar destas coisas. É a sua Ode ao Cais publicada no SAPO24.

E porque hoje as recomendações saem todas à casa, mais uma de um colaborador do SAPO24. O José Couto Nogueira escreveu sobre o casamento de Robert Murdoch e de Jerry Hall e a propósito disso escreveu sobre músicos e sobre media. Vale a leitura.