Mas também se poderia pensar que um milionário com negócios escuros e seis falências não podia ser Presidente e, contudo, ganhou as eleições de 2016. Portanto, prognósticos só depois das eleições de 2020.
Mas vamos por partes.
Bernie Sanders, membro da Câmara de Representantes desde 1991 e senador do Estado de Vermont desde 2007, é o mais antigo membro do Congresso auto-declarado independente. Contudo, sempre alinhou com os Democratas, e foi candidato a candidato presidencial contra Hillary Clinton em 2016. Também sempre se declarou socialista democrático e progressista, com propostas como segurança social universal, escolaridade gratuita e salário mínimo de 15 dólares (presentemente é de 7,25 dólares) por hora. A 17 de Janeiro declarou que vai propor-se novamente como candidato democrata em 2020.
A primeira e a maior questão que se coloca contra a eleição deste combativo político de 77 anos é o rótulo de socialista.
O socialismo é um conceito bastante impreciso; na realidade há muitos tipos de socialismo, formados ao longo do tempo, desde que o francês Saint-Simon cunhou a expressão “socialismo utópico” na primeira metade do século XIX. Marx usou o termo “socialismo” em vez de “comunismo” em 1867. Mas em 1917, quando da vitória bolchevista na Rússia, Lenine passou a usar “socialismo” como um estágio entre o capitalismo e o comunismo. O socialismo era o período de preparação para a sociedade comunista, aquela em que os meios de produção e de distribuição estavam na mão do Estado. O poder nascia nos sovietes, as associações de base nas fábricas e comunidades, que elegiam uma escala de dirigentes até chegar ao poder central. Daí que a União Soviética se chamasse uma República Socialista e não comunista. Mas outras formas de socialismo – como um fim, e não como um meio – desenvolveram-se em vários países, sendo a mais conhecida a social-democracia, que é uma forma de redistribuição de riqueza num quadro democrático.
Desde sempre que “socialismo” e “comunismo” foram considerados idênticos ou antagónicos, conforme as elucubrações dos vários pensadores. Para se ter uma ideia da confusão, basta o exemplo da Grã-Bretanha, onde o comunismo estava ligado à igualdade pregada pela Igreja Católica, enquanto o socialismo era defendido pelos ateus. A revolução de 1848 – a Comuna de Paris - foi vista pelos democratas como um caminho para a prometida Liberdade, Igualdade e Fraternidade, enquanto os marxistas a viram como uma traição à classe trabalhadora por uma burguesia indiferente às exigências do proletariado.
Com o tempo, formou-se na Europa uma divisão nítida entre socialismo e o comunismo. O primeiro é o controle do Estado sobre os grandes meios de produção, mantendo a iniciativa privada, e uma redistribuição fiscal da riqueza, isto no plano económico; no plano político uma democracia parlamentar, presidencial ou não. O segundo, é a ditadura dos assalariados através dos seus representantes e o controle total dos meios de produção e distribuição. Também se gerou uma certa confusão entre socialismo e social-democracia, sendo iguais nos países do Norte, enquanto a Sul a social-democracia se deslocou para a direita do socialismo.
Poderemos dizer – no que seremos certamente contestados – que na Europa se consolidaram democracias burguesas com maiores ou menores preocupações sociais, que andam pelo “centro”: sociais-democracias que oscilam entre a defesa dos mais ricos e a protecção dos mais pobres. O termo “socialista”, usado por muitos partidos no poder em incontáveis ocasiões, tem a oposição da direita (classificada no mínimo como “liberal”), mas ninguém o vê como um passo para o comunismo.
Nos Estados Unidos as coisas evoluíram de maneira completamente diferente. Depois de uma longa história, que seria tedioso detalhar aqui, socialismo e comunismo são considerados a mesma coisa pela grande maioria dos cidadãos, confusão essa reforçada, de propósito ou por ignorância, por grande parte da comunicação social e viral. O socialismo/comunismo é o oposto da liberdade política e da iniciativa privada, sinónimo da censura de ideias e espoliação dos bens – em resumo, tudo o que é contrário às tradições norte-americanas do direito ao trabalho e à acumulação de riqueza. O liberalismo, que na Europa é “direita”, ligado à desregulação dos mercados e à privatização da produção, nos Estados Unidos é “esquerda” – não socialismo, apostado na supervisão do Estado sobre a economia, impedindo a iniciativa privada de se expandir à vontade.
Para os americanos, socialismo é uma palavra negativa, carregada de autoritarismo, que traz imagens do estado totalitário da falecida União Soviética ou da próspera China, dos regimes de partido único de Cuba ou da Venezuela, da justiça arbitrária e comunicação social controlada. Mesmo a vizinhança de um país muito bem-sucedido e basicamente social-democrata, o Canadá, com serviço nacional de saúde e regulação ambiental e económica, não os faz mudar de ideias.
Neste contexto, podemos compreender melhor o atrevimento de Bernie Sanders e a dificuldade em defender o seu programa, considerado socializante. E podemos ver todo o peso das grandes empresas de todos os sectores, a usar todos os métodos legais e psicológicos para impedir que estas ideias ganhem tracção. Sectores como a energia, os seguros e os produtos farmacêuticos gastam milhões em empresas de lóbi para influenciar o legislativo e e constranger o executivo. (O lóbi é uma actividade legal nos EUA.)
Em 2016, o facto de Sanders ser socialista condicionou fortemente a sua derrota frente a Hillary Clinton. Não terá sido o único factor, nem talvez o principal, mas foi determinante.
Mas entretanto as coisas mudam – estão sempre a mudar, para melhor ou pior, não há situações estáticas. A subida da direita mais pró-capitalista, o constante crescimento das desigualdades sociais, e o aumento notório da pobreza e das dificuldades dos grupos sociais mais fracos, a perseguição aos imigrantes (num país de imigrantes) e a desregulação ambiental, têm provocado uma reacção contrária entre os sectores mais politizados da população, especialmente os mais novos – os chamados millennials, porque nasceram à volta da passagem do milénio.
Assim, as propostas de Sanders, que pareciam utópicas em 2016, começaram a ser ouvidas e levadas em consideração. Vários candidatos democratas às eleições presidenciais de 2020 incluíram essas preocupações nas suas agendas. É o caso de Kamala Harris, Elizabeth Warren, Beto O’Rourke e Cory Broker. É provável que outros candidatos que ainda não se apresentaram venham a adoptar algumas, senão todas, das propostas de Sanders, em formas ligeiramente diferentes. Nas últimas sondagens, de finais de Fevereiro, Sanders aparece em segundo lugar, muito distante dos outros. (Em primeiro lugar está Joe Biden, o vice-Presidente de Obama, que ainda não declarou a sua candidatura. Mas é sabido que Biden também concorda com uma cobertura mais abrangente da segurança social, melhores salários, impostos mais progressivos e outras medidas “liberais”).
Nenhum dos propostos candidatos, ao contrário de Sanders, se declaram socialistas – sabem o estigma da palavra. Nem se pode dizer, sob o ponto de vista europeu, que eles ou Sanders proponham um estado socialista; são ideias socializantes, à esquerda do liberalismo que até agora era a esquerda norte-americana.
A segunda questão que se coloca a Sanders é que, ao mesmo tempo que as suas ideias se tornaram mais correntes, também aumentou o número de concorrentes. Contra ele também joga a idade (conforme Rute Vasco já aqui analisou), o facto de ter perdido na primeira candidatura (um souflé nunca sobe duas vezes, comentou cinicamente o “New York Times”) e de ser judeu. Os judeus têm uma influência enorme na política do país – basta ver que nunca nenhum candidato, de Presidente para baixo, de qualquer partido, deixou de afirmar o seu comprometimento com Israel – mas simultaneamente há um sentimento anti-semita que sem dúvida jogará contra ele.
A terceira questão é a força das bases conservadoras do Presidente Trump. Podem não ser bons analistas, ou bons críticos, mas são muito dedicados. Em 2016 levaram a uma escolha inusitada, que, talvez, nem o próprio Trump ou a sua equipa esperavam. O fenómeno já foi estudado até à exaustão e tem a ver com o sentimento de exclusão das massas em relação às elites. Esse sentimento também pode servir para adoptar as propostas socializantes de Sanders, desde que não sejam chamadas de socialistas – o que o senador não que abdicar. Tudo dependerá do uso cuidadoso do vocabulário dos candidatos democratas.
Desde a eleição de Trump que o eleitorado se radicalizou para os extremos e a crispação agressiva tomou conta do país. Os democratas precisarão de um candidato combativo – que Sanders é – mas também que represente uma renovação dos quadros e tenha um vocabulário inovador – que Sanders não representa nem tem.
Os democratas poderão ter um candidato que reúna estas condições – entre os que já se apresentaram e os que ainda hão-de aparecer. Mas, aconteça o que acontecer – até pode dar-se o impedimento de Trump e o ultra-conservador Mike Pence ser ungido –, os Estados Unidos não estão prontos para ter um presidente auto-rotulado de socialista. Bernie Sanders tem um lugar na história do país, mas esse lugar não é a Presidência.
Agora, conclusões definitivas, só depois da eleição.
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