Frequenta o 4º ano de escolaridade e gosta muito da sua turma. Em tratamento e impossibilitado de frequentar, presencialmente a escola, recebe algumas fichas da sua professora sem qualquer acompanhamento ou explicação da matéria dada em sala de aula. “É inteligente e a sua dificuldade é sobretudo no entendimento daquilo que lhe é pedido nas várias fichas. Rapidamente compreende a matéria.”, é assim que a professora voluntária do Aprender Mais descreve o R. no que toca o seu desempenho escolar.
O Aprender Mais é um apoio escolar da Acreditar pensado e desenhado exclusivamente para crianças e jovens com doença oncológica que é dado por professores voluntários que disponibilizam do seu tempo para acompanhar quem mais precisa. Na primeira sessão de acompanhamento feito pela professora voluntária, à distância, o R. estava com muitas dores relacionadas com os tratamentos exigentes aos quais é submetido mas ainda assim esteve ligado para conhecer a voluntária. Porque aquele espaço, aquele momento, iria aproximá-lo da realidade escolar, que tanta falta lhe tem feito. Uma possível normalidade.
Quero falar-vos do A. Um jovem no 12º ano que tem o sonho de ser veterinário e está muito preocupado com os exames nacionais que terá de realizar no final deste ano. Está a assistir às aulas através de videochamadas realizadas por um colega da sua turma, sensibilizado com a situação do amigo. Faz as videochamadas do seu próprio telefone porque não é possível colocar uma câmara em sala de aula e os computadores não estão a funcionar adequadamente. Mais uma vez, e como já estamos tão habituados a ouvir, “não há recursos”. O A. sonha com o futuro, com a entrada na faculdade e vê o seu sonho cada vez mais difícil de ser cumprido.
Quero falar-vos da C. Uma menina que já há alguns anos luta contra a doença. Este ano luta também contra a pandemia e contra um sistema que não está preparado para ela. Frequenta o 7º ano e é complemente apaixonada por História. Conta-me, com muito entusiamo tudo o que já viu e leu sobre a Segunda Guerra Mundial e os regimes totalitários na Europa. Também adora viajar. Esteve até o início de Novembro sem resposta por parte da escola. Após muita insistência da mãe, começou a receber fichas de trabalho mas apenas de alguns professores. Esta insistência resultou, ainda, na disponibilidade de professores de português, história e inglês para, durante uma hora por semana, se reunirem online com a C. Este apoio redobra o entusiamo da C. por compreender o passado e o seu impacto nas nossas vidas.
Posso continuar a contar-vos muitas mais histórias reais de crianças e jovens que além da doença, também têm em comum a vontade de continuar a estudar, a aprender, a crescer, a socializar.
Falo-vos destas histórias para que saibam que uma criança em tratamento oncológico não tem um acesso igualitário ao ensino.
A resposta escolar prevista na portaria 350-A/2017 que estabelece as medidas de apoio educativo a prestar a crianças e jovens com doença oncológica não está a ser cumprida. Apesar de ter sido reforçada, no âmbito da pandemia, pelo Despacho nº 8553-A/2020 que alarga a possibilidade de medidas de apoio educativo a todos os alunos que sejam considerados doentes de risco, não tem sido implementada de forma adequada, não indo, efectivamente, ao encontro das necessidades das crianças e jovens.
O que acontece é que esta resposta educativa prevista fica ao sabor dos recursos disponíveis em cada agrupamento de escolas. Estes, defendem-se dizendo que os recursos são muito limitados, mais agora neste ano de pandemia.
É incompreensível que assim seja.
Em Março, aquando o fecho das escolas, todos os alunos ficaram em casa com aulas à distância, com a consequente implementação de várias práticas educativas: as modalidades de ensino não presencial; a adaptação dos critérios de avaliação e o acesso ao ensino superior. Foi uma boa notícia. Esta resposta foi um início promissor para as crianças e jovens com doença oncológica que necessitavam, necessitam e vão continuar a necessitar de dispor de condições que garantam a aprendizagem.
Mas o R., a C. ou o A. demonstram-nos que houve um grande passo atrás na resposta dada pelas escolas. Continuam sem um acesso equitativo às aprendizagens e não lhes é disponibilizado um acompanhamento mais adequado às suas necessidades, e como eles tantos outros que se vêem confrontados com um cancro tão cedo na sua vida.
Eu e todos aqueles que comigo na Acreditar lutam pelo direito à escolaridade gostaríamos de, em breve, voltar a falar-vos do R., do A. e da C. e de como a doença e a pandemia não são entraves para a sua aprendizagem.
Jessica Arez. Psicóloga Clínica e da Saúde na Acreditar - Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro.
A Acreditar existe desde 1994. Presente em quatro núcleos regionais: Lisboa, Coimbra, Porto e Funchal, dá apoio em todos os ciclos da doença e desdobra-se nos planos emocional, logístico, social, entre outros. Em cada necessidade sentida, dá voz na defesa dos direitos das crianças e jovens com cancro e suas famílias. A promoção de mais investigação em oncologia pediátrica é uma das preocupações a que mais recentemente se dedica. O que a Acreditar faz há 25 anos - minimizar o impacto da doença oncológica na criança e na sua família - é ainda mais premente agora em tempos de crise pandémica.
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