Passaram anos desde a última vez que usei a minha bicicleta. Estava parada na garagem dos meus pais desde os tempos de faculdade até que, na semana passada, resolvi ir buscá-la, fazer uma revisão e metê-la em boas condições para começar a andar regularmente, especialmente agora, no verão. Vivo numa zona central de Lisboa e escuso de pegar no carro para pequenos percursos, pensei. Assim fiz. Comecei a andar aos poucos, mas tenho receio de me tornar num ciclista, no pior sentido do termo: tenho medo de me tornar chato como muitos são.
Sim, vamos aqui admitir que há muitos ciclistas que são insuportáveis e que não têm amigos a não ser outros ciclistas chatos porque ninguém os atura a não ser esses chatos. São um bocado como os vegan: só sabem falar disso e colocam-se num pedestal de moralidade que irrita os comuns mortais. Ninguém gosta deles por dois motivos: primeiro, como já disse, porque são, efectivamente, chatos; depois porque sabemos que eles têm razão e os invejamos um bocadinho. Vejo alguém que se levanta cedo e, mesmo ao frio, tem motivação para pegar numa bicicleta para ir para o trabalho, abdicando do conforto do assento do carro e do ar condicionado, para chegar lá com o rabo amassado, em prol do ambiente, da saúde e do não estar parado no trânsito? Claro que tenho inveja e que essa inveja me faz dizer mal deles. Os ciclistas têm razão! Usamos demasiado o carro, cada um no seu, todos os dias, em percursos pequenos, entupindo as artérias das cidades e perdendo qualidade de vida, ao mesmo tempo que prejudicamos o ambiente.
Agora que já estabelecemos isso, podemos assumir, sem complexos, que muitos (cerca de 63%, números conservadores) dos ciclistas são pessoas que ninguém quer ter no seu aniversário. Porquê? Primeiro, porque chegam todos suados e a cheirar mal; depois, porque se acham melhores do que os outros e porque, como todos nós, são incoerentes e hipócritas. No entanto, como são moralistas, tornam-se mais irritantes. Primeiro, não respeito um ciclista que não use capacete e que dê lições de moral sobre segurança na estrada aos condutores de veículos de quatro rodas. Segundo, não respeito um ciclista que use capacete porque parece sempre que têm um penico na cabeça. A solução? Usar capacete integral? Eu tenho um, mas não uso na estrada porque é demasiado show off, portanto, não há solução possível neste rancor que temos para com os ciclistas. É aceitar que a vida é mesmo assim e cada um seguir a sua via. Sim, via.
Tal como nos vegan, ex-omnívoros, estranho sempre o desdém dos ciclistas para com os não ciclistas. Ninguém nasce ciclista, por isso é suspeito haver discriminação e ódio em vez de enumerarem as vantagens de forma amigável para ver se conseguem trazer mais pessoas para o lado bom da força. Algo me diz que se toda a gente adoptasse a bicicleta como meio de transporte, esses ciclistas radicais iam deixar de se sentir especiais. Por isso, na verdade, eles não querem que mais gente ande de bicicleta, querem só continuar a poder dizer mal dos outros, olhando de cima para baixo da pirâmide do bom cidadão. O problema é que os mesmos ciclistas que refilam (e bem) que as pessoas se atravessam nas ciclovias sem qualquer cuidado, são os mesmo que depois andam a abrir em cima do passeio quando lhes dá jeito ou que quebram todas as regras de trânsito possíveis e imaginárias. O ciclista age com o peão como os condutores de carros agem com os ciclistas. É uma espécie de cascata de ódio. O ciclista só se lembra de circular no meio da via como outro veículo quando tem pessoas atrás que não conseguem ultrapassar. Fora isso, anda sempre no meio das duas vias e a ultrapassar pela direita e a virar em cruzamentos sem fazer sinal com o bracinho como se fosse um Flintstone.
Alguns jogam a cartada do ambiente, mas é treta. Ninguém anda de bicicleta por um bem maior, é para não apanharem trânsito e para ficarem mais fit para o verão. Por exemplo, andas de bicicleta e tens filhos? Não és um ambientalista a sério. Ter filhos causa mais poluição a longo prazo do que andar de carro durante uma vida inteira, por isso, eu que não quero ter filhos estarei sempre mais elevado na hierarquia de pessoas que preservam o planeta. Eu estou pela extinção da espécie humana e isso faz de mim um cinturão negro da ecologia. Por mim, sempre que um ciclista daqueles chatos chamasse o INEM, vinha um paramédico de bicicleta. Lá está a comparação com os vegan, mais uma vez: se estão doentes e só há um medicamento que foi testado em animais, ninguém vai dizer que não. Há ciclistas tão hipócritas que aposto que refilam quando pedem comida pela Uber Eats e o estafeta demora muito porque vem de bicicleta. É bem feito, come as batatas frias e moles para não seres chato e veres que os motores até foram uma boa invenção.
Percebo perfeitamente a fúria dos ciclistas ao andarem na estrada e ao verem como os outros condutores se portam, sem qualquer cuidado ou empatia pelo outro, medindo órgãos genitais a cada manobra no asfalto. No entanto, é uma escolha. Eu não tenho uma mota por um motivo: não confio a minha vida nas mãos dos outros condutores automóveis. É o que é. Interfere na minha liberdade, mas não vale ir para o meio de uma guerra de metralhadoras com uma faca e depois dizer que os outros não têm cuidado com as balas. Ao contrário do que possa parecer, ir do trabalho para casa e de casa para o trabalho de bicicleta não está ao alcance de qualquer um. Tipicamente, ser ciclista diariamente está ao alcance de pessoas mais privilegiadas que vivem e trabalham no centro das cidades. Nunca conheci um ciclista do Cacém que trabalhe no Parque das Nações.
Bem, agora vou ali dar uma volta de bicicleta só para confundir as pessoas. Mas uma volta curta e a parar nas passadeiras, para não me sentir um ciclista a sério e não me tornar desses que são chatos. Não queria nada. Se sentir que isso está a acontecer começo a ir buscar o pão de carro, mesmo que sejam só 800 metros. Já sei que este texto vai gerar ódio porque, lá está, ciclistas são um bocado chatos. Era de esperar que alguém que passa o dia a pedalar fosse mais calmo e menos irritante. Têm de começar a ir pelo caminho mais longo para descarregar as más energias todas. É como os vegans: era de esperar que com tanta anemia e falta de força fossem mais calminhos e menos reactivos. Se alguém ficar ofendido com este texto é porque enfiou a carapu… o capacete. O que já não é mau. Ah, e ninguém quer saber quantos quilómetros vocês fizeram, escusam de partilhar nas redes sociais.
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