Lembro-me de como Kapuscinski, repórter e cronista, também sempre humanista, algures pela entrada deste século, seduziu os alunos da UAB, na Catalunha, numa conferência com auditório a abarrotar, ao refletir em voz alta sobre os deveres do jornalista. Disse que “o dever do jornalista é informar, informar com rigor sobre o que é relevante para a vida das pessoas e para que as pessoas, estando esclarecidas, fiquem pessoas melhores”. Acrescentou, uma ideia que gerou uma discussão que acabou em consenso: “Deve informar de modo a aumentar o conhecimento do outro e o respeito pelo outro e para isso deve ter o cuidado de evitar fomentar o ódio e a arrogância”. O modo como as notícias agora vão desfilando faz pensar muitas vezes nesta lição magistral de Kapuscinski. Acontece a propósito de tantas absurdas querelas em volta do futebol, de intrigas da política ou do quotidiano, ou de conflitos pelo mundo.
Passámos o fim de semana com as televisões a bombardearem-nos com imagens sobre mais um ataque terrorista, desta vez a matança em Ouagadougou. Vimos repetidamente as imagens dos circuitos internacionais, parecem excertos de um antigo mau filme violento de Hollywood, vimos o sangue, a destruição, as chamas, os polícias atónitos, mas não vimos nada de Ouagadougou. Faltou-nos – falta-nos quase sempre – quem nos leve a ver o essencial: quem nos mostre que cidade é esta? Como se vive lá? E o que leva a ter sido o palco escolhido pelos jiadistas para mais um massacre que levou a vida de 29 pessoas de várias nacionalidades?
Não é que não haja novos Kapuscinskis. O problema não será de escassez de grandes repórteres. A grande falta é de patrões de imprensa que cultivem o jornalismo não apenas como um negócio como os outros, mas como um serviço ao público, uma fonte de conhecimento, uma base para uma comunidade de pensamento.
Faltou-nos quem nos contasse que esta capital desconhecida para a maior parte de nós e de nome tão complicado que quem é de lá lhe chama simplesmente “Ouaga” é uma cidade cosmopolita, diferente da maioria das cidades da África Central, com mais de milhão e meio de pessoas num modelo de sociedade que gente experimentada da ONU considera um exemplo de boa convivência entre cristãos e muçulmanos, ricos e pobres, homens e mulheres. Ouagadougou é uma cidade que se internacionalizou, que tem relevância cultural e que atrai empresários e turistas. É a capital de um país, o Burkina Faso, que soube livrar-se de golpismos e de antigas ligações perigosas com mafias regionais e se tem tornado, no imenso continente africano, uma ilha de paz, onde há eleições reconhecidas como livres, com um presidente recém- eleito com 53% dos votos, e onde a cultura e a religião escapam aos fundamentalismos. Talvez seja por isso que a fúria jiadista escolheu agora Ouaga.
As imagens do inferno no Splendid International e no Cappuccino Café de Ouaga são uma réplica das que vimos há dois meses no ataque ao Radisson Blu de Bamako. Os métodos são semelhantes, mas as origens parecem diferentes: na capital do Mali, tinha sido a organização que se apresenta como estado islâmico; agora, no Burkina Faso, parece ser um reaparecimento da al-Qaeda. Estaremos perante uma competição entre as duas principais organizações terroristas islâmicas surgidas nos últimos 20 anos. Uma concorrência que ameaça exacerbar ainda mais a violência com ações terroristas cujas imagens, sem amplo contexto interpretativo, de facto, também servem a estratégia de marketing dos jiadistas e a propagação da especulação sobre risco de ataques idênticos.
Como dizia Kapuscinski, o ofício de jornalista requer descobrir, observar, ouvir e entender o outro. Entenda-se: os outros. O repórter tem de ser um buscador de contextos para poder traduzir a realidade.
TAMBÉM A TER EM CONTA:
Uma boa notícia: o Irão passa a ser tratado pelo Ocidente como um país normal. Um entendimento conquistado com tenacidade e paciência de todas as partes. Teerão livra-se do embargo e abre-se aos negócios.
Uma previsão inquietante: o risco de crash financeiro internacional. Alertas aqui e aqui.
O fosso agrava-se. A Oxfam foi a Davos mostrar como o património do 1% mais rico no mundo supera o dos 99% restantes habitantes da terra. Afinando ainda mais os cálculos: um autocarro com os 62 mais multimilionários no planeta leva tanta riqueza quanto a possuída por metade da terra.
As primeiras páginas escolhidas hoje no SAPO JORNAIS remetem-nos para as suspeitas de manipulação de resultados que agora ameaçam o topo do ténis mundial: ver no L’Équipe, no Libération e no Público.
O debate presidencial logo à noite na RTP vai mudar alguma coisa?
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