Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.
A sociedade e o desporto não podem viver de relações cortadas. É claro para mim que um se desenvolve com o outro, em sintonia, e nunca o contrário. Os acontecimentos recentes obrigam-nos a repensar o nosso papel no mundo e, por isso, e como não tenho tempo para entrar em profundidade num tema tão complexo, sublinharei um enunciado de pontos que considero importantes, neste regresso do desporto a um mundo novo pós confinamento.
Fundamento o texto a partir de três pressupostos:
- É fundamental o entendimento da atividade física como um elemento central na formação do ser humano. O desporto poderá desempenhar um papel na luta contra alguns dos vícios da sociedade em que vivemos, por se tratar de um ambiente privilegiado onde as pessoas se encontram sem distinção, onde podem experimentar a alegria de competir para alcançar uma meta juntos, fazendo parte de uma equipa onde o êxito ou a derrota se supera e se partilha. O desporto também poderá contribuir para a desmistificação da ideia de que se conquista um objetivo quando estamos centrados em nós mesmos;
- O desporto ensina o sentido do outro, a experiência de comunidade e de família;
- Qualquer uma das modalidades, praticadas com seriedade e brio, pode tornar-se num veículo de formação e de desenvolvimento integral do ser humano, ensinando valores como a generosidade, a humildade, o sacrifício, a alegria, a competitividade, o espírito de grupo ou solidariedade.
Por isso, através do desporto, a pessoa é capaz de dar o melhor de si mesma.
Como tal, se no desporto habitam valores tão nobres, revelar-se-á importante uma revolução paradigmática no âmbito educacional, humano e cultural:
- Âmbito educacional e humano: Revelar a importância do desporto escolar, através do ensino de modalidades diferenciadas; desenvolver ações de formação para encarregados de educação em escolas, clubes, federações ou instituições que promovam o desporto e a atividade física; promover ações de formação de um bom dirigismo, encorajando todas as entidades que vão ao encontro dos valores fundacionais do desporto e corrigindo de forma clara e objetiva (se necessário com punições) as entidades ou os indivíduos que adulterem esses mesmo valores; Introduzir critérios exigentes, coerentes e sérios na escolha dos recursos humanos (treinadores, dirigentes, etc) para evitar colapsos constantes e mudanças nas estruturas; promover e divulgar a boa comunicação em jornais, revistas ou televisões, e condenar a comunicação sensacionalista, que não se coaduna com a função social e educativa do desporto.
A sociedade está a enveredar por um caminho individualista, conduzida por uma liberdade perigosa, porque crescemos com a ideia de que esta existe para se fazer tudo o que se quer. O desporto prega o contrário. Quem já experimentou praticar um desporto, individual ou coletivo, percebe que a liberdade pressupõe regras, responsabilidade e um enorme sentido do outro. Acredito que se o desporto de alta competição é, por vezes, violento, agressivo e corrupto, significa que estamos a falhar na formação e na comunicação. As crianças, cada vez mais, abandonam precocemente as suas atividades e, quando olhamos para cima, nem sempre os exemplos são os melhores. No futebol de formação, continuamos a incentivar os nossos atletas, dirigentes, treinadores e pais a quererem enganar os árbitros, a desrespeitarem os mesmos, a simularem faltas e a perderem tempo de jogo. Nestes casos, os fins justificam os meios... (porque parece que no momento da vitória tudo está certo quando, muitas vezes, a realidade demonstra o contrário)
- Âmbito cultural: A sociedade está polarizada. Por um lado, a especificidade de conhecimento é cada vez maior e, por outro, a multidisciplinaridade é valorizada. No caso do desporto, a primeira é muito importante (e, a meu ver, bem), mas a segunda muito pouco (e, a meu ver, mal). Para que os nossos horizontes se tornem mais amplos, gostaria que fosse possível a abertura ao mundo da cultura, das artes ou da gestão (e muitas outras), para que, em vez do medo de coabitar com pessoas de outros meios, nasça uma ambição pelo desenvolvimento, através do cruzamento de pessoas com valências diferentes e complementares.
- Competitividade e entreajuda: Sejamos realistas. O futebol é o principal desporto em Portugal e tem razões para tal. É a modalidade mais praticada, com mais audiência e a que mais contribui para a economia do país. Mas, como referi no início, é nossa obrigação contribuir para uma maior igualdade entre modalidades. O futebol, por tudo o que já conquistou, poderá desempenhar um papel relevante no desenvolvimento de outras atividades, pelo seu poderio a vários níveis. Os exemplos de superação e conquistas noutras modalidades tem sido tão notórios que não consigo elencar um por um os casos de sucesso. Logo, é um sinal evidente de que há mais praticantes, mais interessados e que devemos investir neles. Porque todos vamos precisar uns dos outros. É essa a razão que me faz acrescentar que os clubes portugueses em dificuldades necessitam daqueles que têm maior envergadura e o fosso não poderá aumentar. E se assim é, o aumento da competitividade entre clubes vai depender da ajuda dos “clubes grandes” e essa responsabilidade deve ser-lhes entregue.
- Alguns exemplos no futebol português: Se ao longo dos últimos anos, o futebol parecia uma ilha paradisíaca em matérias económicas e financeiras, esta pandemia foi clara ao deixar expostos alguns problemas – jogadores com problemas de sobrevivência, clubes com ruptura de tesouraria, etc. Torna-se, por isso, urgente a restruturação do modelo do futebol em Portugal, tomada a cabo pela FPF, pela Liga Portugal e pelo governo. É deles a responsabilidade de gerir com alguma firmeza os problemas nos estádios, os comportamentos inadequados dos adeptos, os problemas nos recintos de formação, os despedimentos constantes e trocas entre técnicos, os incumprimentos salariais, o domínio monopolizado dos “clubes grandes” nos escalões mais jovens, a organização da formação de treinadores (que não é coerente com a qualidade dos mesmos), a falta de abertura dos clubes à comunicação social ou o distanciamento para com os adeptos. A FPF também poderá assumir com clareza as suas posições relativamente ao Campeonato de Portugal e a outras competições, sem fechar os olhos aos buracos evidentes.
Não posso terminar este texto sem referir os bons exemplos de muitas pessoas envolvidas no desporto e no futebol em Portugal. Desejo vivamente que continuem a aparecer pessoas que encorajem valores sólidos e que sirvam de exemplo para toda a sociedade. Este é o tempo de pensarmos naquilo que fizemos, naquilo que estamos a fazer, e naquilo que desejamos fazer, de forma a contribuirmos todos para um desporto que nos eleve enquanto país e enquanto seres humanos.
*Francisco Guimarães escreve segundo o antigo acordo ortográfico
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