1. Tal era o inferno nas minas da Diamang, durante a colonização portuguesa, que se mutilaram homens (pernas, mãos) para escapar à recruta do trabalho forçado. E mulheres foram sexualmente “emprestadas” pelos maridos a quem fizesse trabalho pesado por eles. Testemunhos recolhidos recentemente pela antropóloga Cristina Sá Valentim, e relatados domingo passado, no Padrão dos Descobrimentos.
É difícil a capital portuguesa oferecer um contraste tão vivo entre os porões e a superfície como nessa manhã de domingo. Em cima, os heróis esculpidos, voltados para um sol radioso, cercados por turistas de todo o mundo. Em baixo, no anfiteatro subterrâneo, a violência colonial revelada pela pesquisa sobre as canções nativas, reinterpretadas como resistência. E depois o som extasiante das 21 cordas do kora, outro revelador de diversidade e resistência.
Porque os porões de Lisboa, enquanto ex-capital de um interminável império, não contêm apenas o horror ainda por enfrentar. Também escondem as narrativas de quem resistiu como pôde, de várias formas.
2. A sessão de domingo aconteceu a propósito de “Contar Áfricas!”, “exposição-ensaio” que pode ser vista no Padrão até 21 de Abril, onde “importa a diversidade” e “não a ‘visão’ que de África tiveram os portugueses”, dizem os coordenadores (Margarida Kol de Carvalho, Maria Cecília Cameira, António Camões Gouveia). As mais de 40 peças expostas “foram escolhidas, uma a uma, por investigadores da antropologia, artes, geografia, história e literatura” que têm estudado África ou feito intervenção cívica. Reportando-me ao catálogo (não trato aqui da própria exposição), a escolha inclui máscaras, panos, livros, cartas, fotografias, mapas, esculturas, instrumentos da escravatura, jornais, peças de roupa, flechas, manuais escolares, um cesto, um cântaro, um berimbau, um bastão, um crucifixo, um kora, mas também um filme, também uma canção.
3. Essa canção, “Muambuâmbua”, foi gravada em 1954 na actual Lunda Norte (província no extremo nordeste de Angola). É sobre um homem, chamado Muambuâmbua, que foge ao recrutamento para o trabalho forçado da Diamang. Foi escolhida para a exposição por Ricardo Roque, investigador do Instituto de Ciências Sociais (Lisboa), e por Cristina Sá Valentim, que acaba de se doutorar em Pós-Colonialismos e Cidadania Global no Centro de Estudos Sociais (Coimbra). Esta antropóloga investigou o chamado “Folclore Musical Indígena” recolhido e organizado entre 1940 e 1970 pela ex-Companhia de Diamantes de Angola Diamang/Museu do Dundo. Em particular, “as experiências coloniais africanas a partir de canções de origem cokwe” (ou tchokwe), gravadas nos anos 1950.
4. O gigante Diamang existiu durante boa parte do século XX, de 1917 a 1975. Tinha sede em Lisboa, capital português e estrangeiro, escritórios em Bruxelas, Londres, Nova Iorque. Foi um dos cinco maiores produtores de diamantes do mundo. E um dos praticantes do chamado “colonialismo científico”, no qual se inclui a folclorização da produção cultural indígena, vista como produto exótico, a preservar no seu “purismo”. Toda uma criação, e consolidação, de estereótipos do “africano”. Uma espécie que nem tinha valor subversivo quando falava numa das suas muitas línguas, incompreensíveis para a generalidade dos brancos. Daí canções com letras críticas da exploração colonial terem sido gravadas pela Missão de Recolha da Diamang. O que importava era a música, não o alcance político das palavras, explicou a antropóloga na sessão de domingo, “apesar da insistente e rigorosa procura pelas histórias ‘autênticas’ e das letras após a gravação do som”.
Na construção do colonizador, o indígena produzia sons, nomeadamente rítmicos, batuque. Não uma narrativa complexa, com várias camadas, metafóricas, irónicas.
5. A Lunda “era o reservatório da mão-de-obra africana de uso exclusivo da Diamang”, resume Cristina Sá Valentim. Com “a ajuda dos Sobas e dos Chefes de Posto”, a empresa recrutava homens para as minas de diamantes, sob regime de trabalho forçado ou contratado. Os homens eram transportados em camiões até ao Dundo, maior cidade da região, depois continuavam pelo próprio pé até às minas. Podiam “viajar na companhia das suas esposas, que ficavam a trabalhar nas lavras, sob coação, ou então na limpeza dos aldeamentos mineiros ou nos refeitórios”. Até hoje, o trabalho mineiro é recordado “como tendo sido o mais violento e do qual muitos fugiam, tanto no dia do recrutamento na aldeia como durante as longas viagens da aldeia até ao Dundo”.
Diz um dos testemunhos recolhidos pela antropóloga: “O cascalho… quando batesse com a pá partia as pernas das pessoas. […] Era um sistema muito, muito duro. […]”. Num dia normal de trabalho, o contratado entrava às cinco da manhã e largava às cinco da tarde. Um sistema que “obrigou os trabalhadores a uma série de estratégias para evitarem a morte, por exaustão ou por castigos com a ‘palmatória’ e chicote”.
E, antes disso, levou muitos à fuga. “Apesar das várias tentativas da Diamang em travar as deserções, durante todo o período colonial as populações nunca pararam de fugir, nomeadamente para o então Congo Belga.”
6. Mas fugir individualmente não era fácil, e trazia problemas ao colectivo. “Os familiares tentavam resistir a essa violência através de estratégias que impedissem os seus filhos de ir para o ‘cipale’”, como chamavam ao trabalho forçado, ou contrato. Em 2016, Cristina Sá Valentim ouviu de um padre português o seguinte relato: “Sei que no Dundo eles fugiam. Mas, no Dundo, quando eu lá cheguei [em 1965], havia muita gente deficiente. Muita gente deficiente. Das pernas, dos braços, e assim. E tinham-me dito… não era que eles nascessem deficientes. Que se tornaram… […] Então diziam: ‘Os pais fizeram isto para eles não irem para as minas.’”
A projecção deste testemunho no anfiteatro do Padrão dos Descobrimentos foi dos momentos mais impressionantes da sessão, motivador de perguntas. Quando depois falei com Cristina Sá Valentim sobre o quanto esta situação era conhecida dos investigadores, ela disse: “É um dado novo que surgiu no meu trabalho de campo, que nunca tinha lido em literatura sobre o trabalho forçado. Claro que essas situações poderiam acontecer igualmente noutros contextos coloniais, e em Angola, mas não li nada sobre isso.”
7. Dado novo também, na sua pesquisa, e partilhado no Padrão, foram os relatos das “mulheres emprestadas”, feitos por familiares de ex-trabalhadores. Um deles, “com vergonha e algum pudor”, contou: “Os homens eram levados para trabalhar, [para] fazerem escavações […] para encontrar o cascalho. […] Por ser trabalho muito forçado era preciso pessoas com força! […] Dizem que aqueles que não tinham força, havia outros que trabalhavam pra eles. Vou ser sincero, sem vergonha: aqueles que levavam as suas mulheres — vou falar, não tem como, pronto — chegavam ao ponto de trocar, pegarem as mulheres e entregar para aqueles que faziam o serviço mais rápido. Porque quem não apresentasse o serviço pronto, levava muita porrada lá. Quem não cavasse durante o período estipulado pelo chefe de mina, e não sei quê, era preguiçoso, não tinha força, enfim… […] E também digo, que era mesmo um trabalho muito, muito reforçado. Pessoas que morreram, houve pessoas que morreram, pessoas mesmo… por não conseguirem…”
Portanto, “o desespero desmedido dos homens e o corpo das próprias mulheres usado pelos seus maridos como escudo e como valor de troca”, sintetiza a investigadora. “As mulheres que tinham acompanhado os seus maridos para o ‘cipale’ eram usadas pelos esposos como estratégia de resistência o que, consequentemente, acabava por aumentar a espiral de violência transformando as vítimas em opressores, e as mulheres em sujeitos subalternizados não só como negras, mulheres e indígenas, mas também como esposas. Esta memória alerta para a perversidade desse sistema laboral ‘por tarefa’ ao exponenciar a violência física, simbólica, psicológica e ao mostrar como os/as indígenas eram, aos olhos dos agentes colonizadores, destituídos de qualquer tipo de dignidade e de humanidade. Quer dizer, como enfatizado por Frantz Fanon, o poder colonial ia colocando os/as indígenas na ‘zona de não-ser’ onde ‘o negro não é um homem’.”
Aliás, pessoa. Todo um levantamento específico por fazer, o da narrativa das mulheres exploradas por homens explorados.
8. Aldeias inteiras chegaram a fugir em peso ao “cipale”. Porque é que a fuga individual era tão problemática? Cristina Sá Valentim falou longamente sobre isto, a propósito da canção “Muambuâmbua”. “Ao nível das represálias do sistema colonial, uma fuga implicaria castigos, prisões e perseguições, e que envolviam tanto os fugitivos como os seus familiares e Sobas, que eram castigados e presos como forma de humilhação, de intimidação e de chantagem. Mas a fuga implicaria também uma perda de estabilidade política, social e económica.”
As fugas inesperadas de maridos, em concreto, “levavam à diminuição da natalidade e à fragilidade dos casamentos, uma vez que os filhos são o pilar da família”. Bem como “à desorganização da economia de subsistência ao desestabilizar a divisão sexual do trabalho, o que poderia provocar a sobrecarga para as mulheres nos trabalhos agrícolas, que ficavam sem os homens para os trabalhos de preparação da terra, implicando quebras nas colheitas e períodos de fome motivados também pela falta de quem fosse caçar”.
Por tudo isso, “uma fuga não deveria ser uma decisão estritamente individual, feita de forma imprevisível e inesperada”, o que podia levar “à desagregação da família, isto é, da aldeia”. Era preciso decidir em consenso: “Tratava-se de um ato de solidariedade e sobrevivência coletiva.”
E é essa complexidade das formas de resistência que as canções acabam por revelar, passada a primeira camada do que parecia a interpretação. Como aconteceu com “Muambuâmbua”, canção mantida como “folclore angolano”, que na verdade “consistiu numa ferramenta de empoderamento para as comunidades, ao construir um espaço público discursivo onde eram transmitidos ensinamentos e conselhos, neste caso transmitidos pelas mulheres aos homens”, explica Cristina Sá Valentim. “Em primeiro lugar, expressa uma tomada de consciência coletiva da subalternidade vivida pelos sujeitos africanos face ao regime colonial português, que lhes impunha o trabalho coercivo. Em segundo lugar, fala das negociações e apropriações necessárias.”
Sintetizando, “revela sujeitos negros subalternos ao sistema colonial mas que conseguiram expressar as suas vozes”, “que formulavam questões e transmitiam à comunidade complexas estratégias de acção, de forma a resistirem a um sistema opressor e racista”.
9. O kora — espécie de alaúde-harpa — extravasa o estereótipo do “som africano”, de batuque. Convidada a participar na escolha de um objecto para a actual mostra no Padrão dos Descobrimentos, a Djass — a Associação de Afrodescentes responsável pelo projecto do Memorial da Escravatura em Lisboa — escolheu justamente um kora como símbolo de resistência.
Ligado aos “griots” (contadores sagrados, guardiões das narrativas) da cultura mandinga do antigo Império do Mali, o kora é tocado em vários países da África Ocidental, incluindo a Guiné-Bissau. E coube ao maior mestre de kora em Portugal, o guineense Braima Galissá, fechar de forma sublime a manhã no Padrão, ao lado do seu irmão mais novo, ele apenas tocando, Braima tocando e cantando. Meia hora de transporte no tempo e no espaço, uma espécie de elevação colectiva a partir da caverna colonial onde os fantasmas continuam presos.
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