Nunca nos preocupámos tanto com as crianças como hoje. É seguro dizer que, do ponto de vista da preocupação, da dedicação e da devoção, o grupo de pais que tem hoje entre os 30 e os 50 anos são os melhores pais de sempre. Faço parte desse grupo, posso aqui listar algumas das preocupações, dedicações e devoções comuns a tantos pais e mães como eu.
Começam na gravidez, esse período em fazemos tudo para antecipar a melhor vinda ao mundo de sempre que é a do nosso bebé. Dos adereços do quarto e das roupinhas - uma coisa muito século XX - a todos os exames médicos, os necessários, os redundantes e os porque-a-nossa-amiga-também-fez. Das memórias da mãe e do pai durante a gravidez - onde foram, o que fizeram, o que disseram, devidamente retratadas e, dependendo das personalidades, partilhadas ou não com o mundo inteiro, à lista dos alimentos a ingerir para ter a criança mais inteligente, bonita e extraordinária do mundo (esta é uma tarefa especialmente exigente porque ao ritmo actual em nove meses podemos rapidamente passar de uma mãe fantástica porque come três vezes fruta ao dia para uma mãe péssima que verte açúcar no seu delfim ainda ele estava na placenta).
A criança nasce e os próximos 10 anos serão de celebração continua. Cada ano é absolutamente especial e único, cada aniversário um mito do eterno retorno a esse dia primeiro em que nos tornámos mães e pais, em que experimentámos o milagre da criação e sentimos que finalmente fazemos parte de qualquer coisa, que entendemos no universo. Acredite quem não passou por isto, ser mãe e ser pai é hoje, provavelmente, a experiência mais transformadora do que somos. Mais do que alguma vez foi. Não se dimensionam afectos, os nossos pais e avós certamente amaram muito os seus filhos, mas o que falo vai além disso. Mais do que o amor pelo filho, é a forma como o próprio pai e mãe se vê a si próprio. Arriscando o que commumente se designa por tirada de algibeira - nestas coisas de crianças e pais é importante ter sempre um estudo a defender-nos e não o tenho - é como se quanto mais nos afastamos do contacto humano e das emoções que fazem de nós humanos, mais reveladora e essencial se tornasse a experiência de ser mãe e pai que nos remete precisamente para essa dimensão.
As crianças vão crescendo e temos múltiplos desafios. A festa de aniversário, todos os anos única e inesquecível é uma delas. As viagens - muitas crianças têm hoje aos 10 anos mais voos que muitos pais e avós teriam aos 30 e aos 40 anos. A antecipação de talentos - a menina canta no quarto? Academia de canto com ela. O menino quer sempre jogar à bola (por amor de Deus, claro que joga à bola!), escola de futebol com ele, preferencialmente num dos clubes maiores para aumentar as hipóteses. Os miúdos já percebem palavras no smartphone do pai e da mãe - são dotados para línguas, é óbvio, toca de os meter já no inglês (porque ver várias vezes ao dia a palavra play e perceber que clicando acontecem coisas não é, no melhor sentido possível, apenas prova de capacidade de relação causa - efeito).
E assim vamos vendo os filhos crescer e não se pense que a idade faz mudar grande coisa. Quanto muito faz mudar o tipo de coisa. Na universidade esperamos ver brotar os nossos Einsteins e, actualmente, esperamos também com algum orgulho ver brotar algum Mark Zuckerberg. O miúdo programa e faz umas coisas incríveis no computador? Se calhar devia ter uma startup. Se não for a programar que seja a fazer outra coisa qualquer que faça dele tudo menos um ser banal - porque é o nosso filho e será tudo menos mais um. É aliás curioso ouvir algumas conversas de nós, pais, sobre miúdos - sempre os dos outros, claro - que não são especialmente brilhantes. Estamos sempre de acordo que não há estatutos profissionais melhores ou piores e claro, essa convicção intemporal que se mantém, de que fazem falta pedreiros e electricistas. Só temos um requisito nessa convicção: que sejam os filhos dos outros, porque os nossos, como é óbvio, estão fadados para voos mais altos.
Pais, mães e avós que tenham decidido ler estas linhas, não se zanguem. Não sou melhor nem pior. Como mãe, já fui igual a algumas das caricaturas que aqui menciono - e chamo-lhes caricaturas porque estão naquele tom que exagera propositadamente alguns traços. E como mãe sei que, mesmo quando estamos a ser patetas ou apenas a exagerar na dose, o fazemos motivados pelo melhor de nós: esse amor incondicional aos nossos filhos. E também sei que esta é uma realidade que não é de todos. Porque continuam, infelizmente, a existir muitas crianças com cuidados a menos, amor a menos, dedicação a menos e essa é e terá de continuar a ser uma linha prioritária de actuação nas famílias e na sociedade.
No fim-de-semana passado fui oradora numa conferência, em Arcos de Valdevez, intitulada “Pais e professores à beira de um ataque de nervos”, organizada pelo CENFIPE - Centro de Formação e Inovação dos Profissionais de Educação das escolas do Alto Lima e Paredes de Coura. Uma conferência que decorreu a um sábado, tomando todo o dia, implicando para a maior parte dos participantes deslocações de vários quilómetros (em alguns casos, mesmo muitos quilómetros) e, já agora, pagando para lá estar. Sala cheia com cerca de 200 professores oriundos de escolas e níveis de ensino de vários pontos do país e interessados em discutir temas como o sucesso escolar, a importância que deve ter o tempo para brincar e sobretudo quais são os desafios atuais de ensinar crianças num mundo em que tantas regras mudaram e sabendo que quando estes meninos e meninas forem adultos tudo será bastante diferente do que é hoje.
Retive várias intervenções, tanto da plateia como de outros oradores. Uma delas tem a ver com a obsessão com os testes e com o medo que todos - pais, professores, responsáveis educativos - têm de não ter um número. Mesmo que saibam que, ainda assim, é só um número. Mas, sem um número para lhes atribuir, não sabemos o que valem. E, subitamente, eu que sempre achei que fazer exames e testes é uma coisa normal, percebi a tensão insuportável em algumas salas de aula. Os testes são úteis num quadro em que ajudam os alunos a sistematizar estudo, a organizar tempo de respostas, a validar o que vão aprendendo - lá fora, na vida real, quando forem crescidos, vai continuar a acontecer. Mas os testes - e menos ainda os exames - não podem ser o crivo definitivo do que “vale” um aluno, sobretudo quando tantas outras valências podem e devem ser valorizadas - e passamos a vida a repetir essa lengalenga em conferências e debates dos “crescidos”.
Mas numa sala de aula com 30 alunos, fica difícil. Numa sala de aula com 30 alunos e com um programa extenso e quantas vezes desajustado ou mesmo inútil para cumprir fica ainda mais difícil. E, no final do ano, poucos professores se querem arriscar a ter um pai ou uma mãe à perna - ou vários - porque o filho ou filha foi decerto mal avaliado já que não houve “testes”. Essa é a arma de arremesso óbvia: como é que sabe que ele vale 12 e não 18 se nem sequer fez um teste? É que na pauta, eles continuam a ser um número. Queremos qualificar pessoas mas passamos o tempo a quantificar pessoas. É uma herança de muitos anos e não é fácil mudar. Mas quando ouvimos professores como Adelino Calado do Agrupamento de Escolas de Carcavelos percebemos que é possível. É preciso experimentar - é preciso testar, aqui sim. É preciso não ter medo.
O que leva ao segundo tópico da conferência. Adoramos as nossas crianças mas queremos que estejam sentadas e quietas. Senão são hiperactivas e se são hiperactivas têm de ir a um psicólogo e dependendo do psicólogo podem ter de ser medicadas. Tive a sorte de estar sentada no mesmo painel do professor Carlos Neto, professor na Faculdade de Motricidade Humana e autor dos livros “Jogo e Desenvolvimento da Criança” e “Motricidade e Jogo na Infância”, que há 40 anos defende essa coisa aparentemente óbvia que é o direito das crianças a brincar. Estamos todos de acordo, não é? Pensem lá bem e se calhar não é tão óbvio assim. Estamos todos de acordo que brinquem desde que: não façam demasiado barulho, não berrem, não embirrem umas com as outras, não se magoem, não testem limites, não experimentem fazer coisas que nunca fizeram. A lista pode continuar. Os pais, dizia o professor Carlos Neto, não têm tempo - nem paciência muitas vezes - para os filhos. Os professores - ou a escola no global - são o repositório “seguro” das crianças. Com recreios “todos iguais”, como referiu, com proibições que pareceriam só estranhas há 30 anos (não subir às árvores, não pular o muro …). Temos crianças que não sabem o que é esmurrar um joelho - caros pais, lembram-se dos vossos joelhos quando tinham 10 anos? Eu lembro-me dos meus e eles ainda hoje exibem orgulhosas marcas desse tempo.
“A superprotecção mata. O medo mata. A cultura da superprotecção e a cultura do medo são os grandes problemas da escola”, disse na sua intervenção Carlos Neto. Numa apresentação em que disse tantas outras coisas que merecem a nossa reflexão, deixo-vos apenas com uma das mais simples. quando os miúdos entre os 3 e os 5 anos começam a ter mais facilidade em dominar um smartphone do que em atar os sapatos, se calhar devíamos pensar um pouco em competências motoras - coisas que se fazem com as mãos, com o corpo. Claro que nesta conversa toda há um tema de fundo maior e que é o tempo que pais e mães têm para os filhos. Pensemos lá na angústia das férias de verão que se aproximam: o que se faz com os miúdos? Onde os guardamos, seguros e felizes, até estarmos de volta a casa depois de 12 horas, se não mais de ausência? Estado, empresas e famílias, é uma discussão a três, e só assim podemos repensar modelos de vida.
Por último, mesmo que não em último lugar. Predestinadas ao sucesso. É isso que hoje em dia todas crianças são. Não podem ser menos que isso, não podem ser simplesmente crianças. A expectativa é elevadíssima e um pai ou mãe de uma criança simplesmente normal fica rapidamente em estado de ansiedade. É ver a expressão de alguns pais e mães em reuniões de pais ou até de amigos em almoços e jantares de convívio. O miúdo não pode simplesmente gostar de basquetebol - tem de ser uma potencial futura estrela de NBA. A miúda não pode apenas gostar de escrever e de contar histórias - certamente será a futura J. K. Rowling. Claro que todos os nossos génios andam agarrados pela mão, para não caírem, para não se magoarem, para não sofrerem desilusões. Para não crescerem, no fundo. Ou, como dizia também o professor Carlos Neto, para se tornarem uns “totós”.
Hoje é Dia Mundial da Criança. Um dia tão bom como qualquer outro para decidirmos que estas coisas têm de ser levadas a sério, deixando as brincadeiras para as crianças.
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