Este texto faz parte da rubrica Regresso a um Mundo Novo, em parceria com a plataforma 100 Oportunidades, em que vários jovens nos ajudam a pensar o mundo pós-pandemia.


  • A corrida à suplementação de multivitamínicos e o estado de saúde global da população:

A alimentação em tempo de isolamento social tem dado muito que falar, fruto da preocupação extrema da população em estar bem munida de multivitamínicos como se fosse o escudo protetor. A verdade é que esta preocupação “vende”, e vende bem. A ideia de proteção à pressa e sem fundamento exacerbou a procura de produtos nas mais variadas formas, com a expectativa da bolha de proteção, fazendo disparar a disseminação de ideias erradas que prometem mundos e fundos no que toca a “imunizar” pessoas. 

As mensagens que se espalham sobre nutrição e imunidade têm causado muitos efeitos adversos aos que se debruçam há anos sobre o estudo das ciências da nutrição com base na evidência. Os nutricionistas têm sido incansáveis na matéria de esclarecer a comunidade por cima da avalanche de conteúdo nutricional que invadiu as redes sociais, cuja curva parece estar longe do achatamento.

A preocupação com a nutrição deve ser algo diário e não sazonal. Deve fazer naturalmente parte da nossa vida de forma consistente, tanto nesta como noutra situação cujo sistema imunitário precise de enfrentar. Procurar soluções milagrosas, de forma pontual, de nada serve se tivermos um estado metabólico débil e cansado de dietas com nomes sonantes. Contudo, estas dietas parecem muito mais atrativas do que adotar um estilo de vida simples e consciente, mantendo um padrão alimentar saudável e sustentável com base nos princípios inerentes à alimentação mediterrânica.

O que é importante realçar, é que um indivíduo com um estilo de vida menos saudável, corre o risco de enfrentar este vírus de forma menos simpática. Não, não é só a idade que parece ser a agravante da doença. Inúmeros estudos acerca dos doentes infetados por Covid-19 têm apontado para outro grupo de risco de quem se fala menos, os indivíduos obesos com idade inferior a 60 anos. De salientar também as doenças que vêm de “arrasto” com a obesidade, as chamadas comorbilidades, nomeadamente hipertensão, diabetes tipo II, doença cardiovascular, e alguns tipos de cancro. Doenças estas que surgem de uma síndrome metabólica instalada causada pelo excesso de gordura corporal acumulado e que prejudicam em muito a resposta imune. 

Ora, de pouco ou nada serve, que este grupo de risco mais jovem recorra aos tais “shots de imunidade” para se tentar salvar. A primeira abordagem deverá ser aquela que menos agrada e a que é menos confortável: Mais atividade física, e uma reviravolta nos seus hábitos alimentares! 

Só desta forma é possível enfrentar uma nova vaga da pandemia, com menor probabilidade de adquirir uma doença severa em caso de infeção, menor probabilidade de morrer precocemente e ainda de sobrecarregar os sistemas de saúde, dado o enorme número de internamentos e situações extremamente complicadas em doentes com excesso de peso.

Sabendo de antemão que a literacia em saúde nos portugueses não atinge níveis suficientes e que a mesma não está capacitada para resolver o problema per si, cabe então às entidades governamentais pensar sobre o tema da obesidade e restantes doenças crónicas não transmissíveis. 

Mais do que providenciar as infraestruturas necessárias, é preciso investir na educação para a saúde, atuar nos cuidados primários, educar as crianças em meio escolar e ensinar-lhes como podem proteger a sua saúde durante a vida. 

Onde estão os nutricionistas nos cuidados primários? E nas escolas? Contam-se pelos dedos! Ainda assim, o trabalho dos profissionais da nutrição e de entidades como a Ordem dos Nutricionistas tem sido excecional, reconhecendo valor e competências à profissão ao nível da intervenção precoce e com valor acrescentado para as contas do estado em matéria de saúde. 

A maior parte das doenças crónicas que mais sobrecarrega essas contas, estão diretamente relacionadas com a alimentação. Para além disso, numa situação de pandemia como a que atravessamos, uma menor prevalência de obesidade na população resulta numa pandemia com menos casos severos, menos internamentos e menor será fatura a pagar no final. 

Contudo em Portugal, vale ainda a pena lembrar o compromisso internacional de reduzir até 2025 a mortalidade precoce pelas Doenças Crónicas não transmissíveis (30-69 anos), compromisso esse que tem atualmente fracas possibilidades de sucesso. Por outro lado, é compreensível que as prioridades em saúde passem maioritariamente por remediar. Indivíduos já doentes e urgentes necessitam de cuidados e respostas urgentes. 

O que não pode ficar esquecido é que continua a ser necessário o crescente gradual de investimento na matéria da prevenção, com uma visão menos redutora dos benefícios que esse investimento trará a longo prazo. Um país menos doente, é certamente um país mais produtivo, algo que esta pandemia veio deixar muito claro, criando uma excelente oportunidade para falar acerca do assunto. 

  • “PÃODEMIA”, regresso à dieta mediterrânica e receitas “FIT”

Por outro lado, obviamente que o tempo prolongado da estadia no domicílio, iniciou movimentos interessantes e outros menos interessantes, a meu ver, no âmbito dos hábitos alimentares. O lado mau é o de quem se resigna e responde à situação comendo mais, e pior. Por outro, o lado bom: vimos regressar alimentos muito interessantes à vida das pessoas que até então tinham sido terrivelmente temidos, nomeadamente o pão. Deixa-me mais descansada ver que a intolerância ao glúten de que muitos alegavam padecer, passou com a Covid-19, uf!

Algo positivo a destacar foi também foi a corrida aos enlatados, nomeadamente às leguminosas e alguns peixes interessantes como o atum ou a cavala. Com isto, creio que pelo menos haverá mais disponibilidade no domicílio destes alimentos e uma maior valorização dos conceitos que se querem na alimentação da vida quotidiana: alimentação simples, variada, descomplicada e acima de tudo económica, privilegiando grupos de alimentos que por vezes são esquecidos, como é o caso das leguminosas. Só se espera que não fiquem na despensa Ad Eternum até que a validade termine!

Por fim, algo agridoce que assolapou as redes sociais, o abuso frenético do mundo das receitas “FIT”. Claro que, optar por encarar esta situação de uma forma positiva na tentativa de pensar um pouco mais na saúde individual, constituí um bom indicador, mas é necessário procurar as fontes de informação certas. As receitas denominadas de “FIT” por vezes são tudo menos simples, económicas, promovem pouco os produtos locais e sazonais e ainda por cima conseguem ter um maior valor calórico do que por vezes as suas versões tradicionais. O que de nada serve a quem pretende perder peso, uma vez que o rotulo #FIT dá uma sensação de “falsa segurança” a quem as ingere sem conta peso e medida. Trocar açúcar de cana por xarope de agave, açúcar de coco e demais formas engraçadas de acarinhar o açúcar, é trocar açúcar por açúcar mais fancy e significativamente mais caro por sinal. Assim, é necessário apelar ao bom senso nesta temática e não atirar açúcar para os olhos. Não é preciso demonizar o açúcar, mas não vamos liberalizá-lo nestas modalidades.

Em suma, este período que atravessamos pode ser uma oportunidade excelente para refletir sobre alimentação, sobre estilos de vida, na ótica de todos os intervenientes. É preciso pensar e ajudar decisores políticos a pensar nos benefícios a longo prazo em investir para evitar os casos incidentes na pandemia paralela, e já existente, das doenças crónicas. Sobretudo, quando falamos de fatores modificáveis e no impacto benéfico que isso trará na matéria da saúde pública a longo prazo.

Infelizmente, a possibilidade de enfrentar uma doença infetocontagiosa é mais temida pela população do que a possibilidade de ser diagnosticado com uma doença crónica, uma vez que o desconhecido é sempre o mais temido. A doença crónica acaba por estar altamente banalizada e se aparecer, “tomo mais um comprimido e fica resolvido”. Doenças essas que sem o protagonismo devido, continuam a ser responsáveis por 86% da mortalidade em Portugal (NCDs Monitor, OMS 2017). Ainda assim, considera-se mais cómodo colocar uma máscara do que mudar hábitos do quotidiano. Em consequência deste pensamento generalizado por parte da população, o problema está longe de estar resolvido e é preciso realmente agir a um nível macro na comunidade ao nível da estratégia em saúde pública.

Esta fase irá passar, e continuaremos expectantes face a uma vacina que se revelará eficaz por se tratar de uma doença infetocontagiosa. Contudo, no que respeita à diminuição da prevalência da obesidade e outras doenças crónicas não transmissíveis não há nem haverá melhor vacina do que a prevenção.

*Joana Baleia escreve segundo o novo acordo ortográfico