José Saramago nasceu a 16 de novembro de 1922 numa aldeia, "chamam-lhe Azinhaga, está naquele lugar por assim dizer desde os alvores da nacionalidade […], mas dessa estupenda veterania nada ficou, salvo o rio que lhe passa mesmo ao lado (imagino que desde a criação do mundo)”. Muitas foram as vezes que José Saramago se referiu ao Almonda, esse rio que “configurou o carácter” das gentes de Azinhaga, esse rio que “corre-me nas mãos, agora molhadas”, esse rio onde tão cedo descobriu que não existe “no mundo um silêncio mais profundo que o silêncio da água”.
Apesar de ter ido viver para Lisboa com dois anos de idade, José Saramago sempre voltava nas férias à sua aldeia natal, este lugar onde cabia o “universo inteiro” e onde viviam aqueles que constituíram a sua formação espiritual: o avô Jerónimo, “o homem mais sábio” que conheceu, e a avó Josefa com o seu o riso «foguete de cores» que nunca recusou um bocado de pão e peixe frito a quem à sua porta viesse com fome. A infância e a adolescência foram, portanto, vividas entre as várias casas por onde foi vivendo e partilhando em Lisboa, e a descoberta, a contemplação que sentia na «única terra onde poderia ter nascido», Azinhaga do Ribatejo. No seu único livro (verdadeiramente) autobiográfico, “As Pequenas Memórias”, José Saramago conta muitas das histórias que viveu e partilhou com estes avós: quando, à noite, debaixo da figueira, o avô Jerónimo lhe mostrava o Caminho de Santiago no céu estrelado, ou quando a Avó Zefa lhe dizia “Vai, vai” sem mais, sabendo ou intuindo, pode ser o mesmo, que essa liberdade era o melhor que lhe poderia dar.
A 7 de dezembro de 1998, aquando da entrega do Prémio Nobel, estes foram (também) os nomes que ecoaram na Academia Sueca: os seus avós maternos Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha, «pessoas comuns» que, então, se transformaram em «personagens literárias», e que se juntaram a esse universo, real e de ficção, de José Saramago e de todos nós, seus leitores. Sentada, com o orgulho de neta e de trineta, houve uma parte de mim que voou até aos confins de uma memória que nem eu sabia que tinha. Ali, em português, falava o meu avô dos seus avós. Talvez por isso mesmo, algures pelo ano de 2018, surgiu, da cabeça e, sobretudo do coração, do meu pai, esta ideia das “100 oliveiras para José Saramago”.
Há como que um continuar da história: de netos para avós, de recordar a importância das nossas raízes, de como a nossa memória se faz daquilo que vivemos e daquilo que os “nossos” também viveram. A 16 de novembro de 2022 foi plantada a última oliveira, Josefa de seu nome, sendo que cada uma destas oliveiras tem o nome de uma personagem saramaguiana. São 100 oliveiras, 100 nomes de Saramago. Todos os nomes de Saramago. Neste “dia levantado e principal”, foi celebrado, por todos, o escritor José Saramago. Foi também celebrado o meu avô. Foram celebrados os meus trisavós Josefa e Jerónimo. Netos que somos, estamos a dar continuidade ao teu legado, ao legado dos teus avós, consequentes com os princípios que praticaste em vida, tendo como ponto fundamental que o ser humano é sempre a prioridade.
«Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.», epígrafe de “Ensaio sobre a Cegueira”, retirada do fictício “Livro dos Conselhos”, remete-nos para Blimunda que (nos) vê por dentro, ou para Josefa que todos os dias da sua vida viu nascer o sol, ou para a mulher do médico que olha, vê e repara naquilo que somos, enquanto espécie, enquanto comunidade, enquanto Humanidade. Estas três mulheres saramaguianas, duas de ficção, outra trazida para esse território, são parte do legado do meu avô que, a cada dia, tento honrar e cumprir, trazem, no fundo, a relação do Eu com os Outros para o centro da nossa vida, do nosso compromisso ético e político, da nossa responsabilidade cívica.
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