DEZ. Já o jantar está terminado, os talheres desarrumados, os pratos levantados. As conversas são fáceis de adivinhar: sobre o país, a política, os jovens, as redes sociais, a maneira como toda a gente está errada tirando os exactos comensais que por acaso se sentaram naquela mesa… Tudo é igual a um qualquer jantar, mas há uma pressa diferente, pois a meia-noite vem aí.
NOVE. Já há música bem alta, a excitação a aumentar, as conversas fazem-se ao ritmo do álcool a temperar a excitação. Sim, a alegria é um pouco forçada (afinal, estamos a festejar um número que muda), mas é impossível resistir: o mundo pula e avança em direcção ao primeiro segundo do primeiro minuto da primeira hora do primeiro dia do ano.
OITO. São tradições que a muitos soam ao plástico das cartolas com que saudamos o novo ano. Mas as tradições são todas inventadas! As que contam são as que temos desde a infância, as que inventamos em cada país, cada terra, cada grupo de amigos, cada casal, cada família — ou só para nós, sozinhos, sem contar a ninguém.
SETE. Esta excitação dos números que mudam não deixa de ser apenas uma desculpa, uma desculpa para estarmos juntos de alguém, para conversar, beber, dançar, gritar e sorrir — e, no fim, já sabemos... Bem, já lá chegamos! Faltam seis segundos…
SEIS. Pegamos nas passas, levantamo-nos, por um minuto tentamos que os pensamentos sejam positivos, mesmo quando não acreditamos nas tais bruxas que não há. Nunca sabemos quando os segundos importantes nos chegam à vida, mas este, pelo menos, vai ser inesquecível — durante algumas horas. Já todos em pé, pensamos onde estávamos e como éramos há um ano.
CINCO. Faltam cinco segundos, estamos bem perto daquela pessoa especial, daqueles lábios que vêm aí, do fogo que explodirá no céu, mas ainda temos tempo para pensar (nunca deixamos de pensar, de julgar, de imaginar). E eu penso, neste segundo, como mais do que prometer, o que o Ano Novo podia trazer era algum esquecimento… Voltar ao início, voltar a pôr o relógio no princípio do tempo, encolher os ombros e perdoar… Perdoar, enfim, é uma palavra já um pouco pesada, fiquemo-nos pelo deixar passar, sorrir depois da zanga, abraçar depois do amuo, dar a mão depois dos dias cheios de infinitos enredos que ninguém consegue acompanhar.
QUATRO. A quatro segundos do beijo, fazemos promessas, pensamos no que vem aí, prometemos por fim resolver os nossos problemas, visitar quem está longe, avançar com os projectos de vida, esquecer o que não importa. E no próprio momento de fazer a promessa, já olhamos com um sorriso irónico para o bicho que amanhã seremos, preguiçoso e esquecido de tudo o que a si mesmo prometeu.
TRÊS. Já explode o fogo lá ao fundo, se calhar o nosso relógio está atrasado e já passou o ano, mas continuamos a contar, de copo na mão, o coração a bater.
DOIS. Bem, já estamos no dois, mais vale encolher os ombros, não pensar em nada, fechar os olhos, comer as passas duma só vez…
UM. E dessas tradições mais ou menos inventadas, a melhor de todas é o beijo nesse segundo final, ou talvez no primeiro segundo (são o mesmo, não são?), de olhos fechados ou bem abertos, com o fogo a iluminar a cara de quem beijamos, os corpos bem juntos, um abraço, depois o champanhe, os gritos, a festa que continua e mais dança e mais segundos e quando damos por nós já estamos de novo nos dias habituais e o mundo lá avança a cavalgar o ponteiro do relógio que nunca pára.
ZERO. Feliz Ano Novo!
Marco Neves | Tradutor, professor e autor. Escreve sobre línguas, livros e outras viagens no blogue Certas Palavras. O seu livro mais recente é o Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português.
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