Uma doença oncológica não é algo que termina com o final dos tratamentos. Para além das sequelas da doença ou efeitos secundários dos tratamentos, existem várias dificuldades e entraves em retomar uma vida normal, entraves esses que são colocados pela sociedade e pela legislação nacional. Este tipo de situações agrava-se nos casos da oncologia pediátrica: uma pessoa que teve um cancro na infância e que teve alta há dezenas de anos pode vir a deparar-se com situações discriminatórias na vida adulta devido à condição médica que foi ultrapassada com sucesso no passado.
Foi neste contexto que, em 2018, decidi juntar-me à Acreditar, associação que me apoiou desde que me foi diagnosticado um neuroblastoma torácico aos 3 anos de idade até terminar as idas ao IPO aos 13 anos. Algum tempo depois, apercebi-me que sobreviver a um cancro não é suficiente, a discriminação e o estigma social ainda existem e é preciso combatê-los, e foi aqui que encontrei a associação ideal onde poderia dar o meu contributo para ajudar as crianças que ainda lutam contra um cancro ao mesmo tempo que poderia ajudar outros sobreviventes como eu. Comecei a fazer voluntariado na casa da Acreditar em Lisboa e depois na pediatria do IPO de Lisboa, ao mesmo tempo que participei nos projetos de investigação e de advocacia social, onde se incluem os seguros e direito ao esquecimento.
Mas afinal o que é o direito ao esquecimento?
O direito ao esquecimento é um direito essencial para evitar situações de discriminação e injustiça social. Entrou no quadro legal europeu com a entrada em vigor do Regulamento Geral de Proteção de Dados, a 25 de maio de 2018, onde é referido no artigo 17.º que “o titular [dos dados pessoais] tem o direito de obter do responsável pelo tratamento o apagamento dos seus dados pessoais”. O historial médico é um dado pessoal, sendo também uma categoria especial de dados pessoais (art.º 4.º/1, art.º 4.º/15 e art.º 9.º), pelo que o tratamento deste tipo de dados exige especial cuidado e atenção. O art.º 9.º desta lei tem uma ressalva importante no n.º 4: “os Estados-Membros podem manter ou impor novas condições, incluindo limitações, no que respeita ao tratamento de dados genéticos, dados biométricos ou dados relativos à saúde”.
Em suma, o quadro legal europeu reconhece o direito de uma pessoa ter os seus dados pessoais apagados, mas no caso dos dados de saúde cabe a cada Estado-Membro legislar quanto às restrições neste direito.
Com base na legislação europeia e até na própria Constituição da República Portuguesa, que consagra no artigo 13.º que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”, poderíamos pensar que um sobrevivente de doença oncológica infantil estaria protegido ao não ter de referir que teve um cancro na infância ou adolescência. Infelizmente, não é esta a realidade em Portugal.
São várias as situações em que um sobrevivente pode vir a ser discriminado face ao seu historial médico, sendo que os casos mais graves são no acesso a créditos à habitação e seguros de vida. Vários sobreviventes já se depararam com situações em que viram um pedido de crédito à habitação, um seguro de vida ou um seguro de saúde recusados devido aos seus antecedentes médicos. Muitas vezes, a recusa não é direta, mas quando as instituições financeiras se deparam com qualquer referência a cancro no historial médico acabam por aumentar os prémios de forma desmesurada, levando a uma discriminação indireta ao impedir o acesso efetivo aos seus produtos. Como tal, é essencial implementar um regime de direito ao esquecimento em Portugal como já existem em quatro países europeus de forma a evitar que este tipo de discriminação continue a existir.
Em 2016, França foi o primeiro país a criar um regime de direito ao esquecimento aplicável aos sobreviventes de cancro (e a outras patologias) que consiste na proibição de recolher informação médicas após o fim dos protocolos terapêuticos. Esta proibição entra em vigor passados 10 anos no caso da população adulta, e 5 anos no caso das crianças ou jovens até aos 21 anos de idade (inicialmente era até aos 18 anos de idade, mas em 2020 a lei foi revista e houve uma ampliação até aos 21 anos). Estes limites de 10 e 5 anos são os limites máximos que podem ser reduzidos consoante a patologia com base numa tabela de referência regularmente atualizada (por exemplo, no caso do cancro da pele o direito ao esquecimento é garantido após apenas um ano da alta médica). Depois da França ter implementado este direito ao esquecimento houve mais três países a criar um regime semelhante (Bélgica, Luxemburgo e Países Baixos) e em Portugal já foi apresentado um projeto de lei que visa a implementação de um regime similar.
Ao longo dos últimos anos, a Acreditar tem feito levantamento e trabalho de sensibilização para que o direito ao esquecimento seja consagrado na legislação portuguesa. Recentemente, deu entrada na Assembleia da República o Projeto de Lei n.º 691/XIV, do PS, que visa reforçar a proteção da pessoa segurada, proibindo práticas discriminatórias, melhorando o acesso ao crédito e contratos de seguros por pessoas que tenham superado riscos agravados de saúde, consagrando o “direito ao esquecimento”. Este projeto de lei é um passo no caminho certo para acabar com a discriminação que existe face a sobreviventes de doença oncológica na infância e na adolescência que mesmo vários anos após ultrapassarem a doença continuam a ver os seus direitos limitados.
O direito ao esquecimento não só é uma importante ferramenta de justiça e igualdade social, como vai ao encontro das metas estabelecidas no Plano Europeu de Luta Contra o Cancro e no European Cancer Summit de 2018, planos estes que preveem melhorar o bem-estar e os direitos dos doentes oncológicos durante e após a doença. Uma criança com cancro será um adulto que enfrentará dificuldades criadas pela sociedade, mesmo que não tenha tido sequelas, mesmo que não se lembre de ter estado doente sequer. Desta forma cabe-nos a nós, enquanto sociedade civil, e cabe ao Estado, enquanto detentor do poder político, a tarefa de fazer o maior esforço possível para acabar com estas desigualdades que afetam centenas de sobreviventes de cancro infantil em Portugal.
Eduardo Matos é sobrevivente de cancro pediátrico, licenciado e mestrando em Direito e membro do grupo de trabalho da Acreditar sobre discriminação financeira e direito ao esquecimento
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