Num ponto concordam os “anti-imperialistas” e os pró-americanos: o Presidente do “Império” e Comandante em Chefe das suas forças armadas tem poderes que se estendem do Pólo Norte ao Sul, e do Alaska à Austrália, passando pelos orientes (Próximo e Médio) e, fatalmente, pela Europa. Também tem influência, já agora, no padrão de vida de 322 milhões de norte-americanos.
Portanto não surpreende que as eleições para este cargo superlativo, marcadas para 8 de Novembro, suscitem interesse e ansiedade em todo o mundo. E também não surpreende que uma grande maioria de habitantes desse mundo esteja de cabelos em pé com a perspectiva de que ganhe um homem de estranhos cabelos cor de laranja e ainda mais estranhas ideias quanto ao que fará com o planeta.
No complexo sistema constitucional do país, a eleição do presidente é feita indirectamente por um Colégio Eleitoral de 538 representantes dos Estados. Para ser candidato a presidente também é preciso ser escolhido pelos delegados do seu partido, num processo semelhante: os delegados dum estado votam todos no candidato escolhido pelos eleitores do partido nesse estado.
Isto é importante para perceber como está a situação nesta altura, princípio de Março. Para conseguir a nomeação pelo Partido Republicano é necessário o voto de 1.237 delegados. Estas eleições, ditas “primárias” são feitas estado a estado, em datas diferentes, o que permite ir avaliando as possibilidades dos candidatos. Trump tem, até agora, 316 delegados, enquanto os senadores pelo Texas, Ted Cruz, tem 226, e o pela Flórida, Marco Rubio, tem 106. Os observadores consideram as próximas primárias de 15 de Março como a última oportunidade para parar Trump. Uma vitória de Rubio em seu Estado natal, a Flórida, levantaria questões sobre a força de Trump, assim como uma vitória de John Kasich, governador de Ohio.
Trump é um corpo estranho ao partido; não vem das bases, não fez uma carreira política normal e não é controlável. Anunciou a sua candidatura de repente e tem fundos próprios que lhe permitem concorrer sem precisar dos cofres partidários.
O Partido Republicano está muito dividido, e não apenas porque há vários candidatos, mas também porque os seus próceres – os senhores que tradicionalmente determinam quem vai enfrentar o democrata – têm sérias dúvidas de que Trump consiga vencer Hilary Clinton na eleição de Novembro. Trump é um corpo estranho ao partido; não vem das bases, não fez uma carreira política normal e não é controlável. Anunciou a sua candidatura de repente e tem fundos próprios que lhe permitem concorrer sem precisar dos cofres partidários.
Por outro lado, Trump tem uma agenda própria, errática, sem as preocupações estratégicas que os velhos republicanos consideram indispensáveis para ser viável. Por exemplo, Mitt Romney e John McCain já vieram publicamente afirmar que ele não é aceitável. Em termos simplistas, é muito mais à direita do que o conjunto do partido, ao mesmo tempo que tem propostas consideradas sacrílegas e delirantes pela filosofia republicana tradicional. A declaração mais recente (há declarações novas todos os dias) foi a aceitação do apoio dos grupos suprematistas brancos – as organizações que defendem a superioridade da raça ariana e querem eliminar (fisicamente ou por expulsão) todos os negros, hispânicos, muçulmanos e demais minorias. Estes grupos não só são moralmente inaceitáveis como politicamente inviáveis – ou seja, o apoio deles é uma espécie de beijo da morte para qualquer candidato. Mas é indiscutível que Trump tem muitos apoiantes e que, se nada se fizer, ganhará a candidatura.
Para nós, europeus, que temos outros problemas, receios e preconceitos, é difícil perceber porque Trump faz tanto sucesso. Dizer que os americanos são estúpidos, racistas, imperialistas, etc. é uma opinião ideológica que não explica nada. A opção por Trump tem a ver com angústias profundas da sociedade americana que se têm agudizado nos últimos anos a um nível quase paranóico.
Os conservadores – chamemos assim ao conjunto muito díspar de pessoas que consideram que os valores e a qualidade de vida estão seriamente ameaçados – sentem que o país já não lhes pertence. Aquele país ideal, que talvez nunca tenha existido mas sempre foi uma possibilidade, em que os imigrantes eram servis e invisíveis, o trabalho abundante, a diferença entre ricos e pobres ultrapassável – qualquer pobre poderia vir a ser rico – a homossexualidade não tinha direito de cidade e a criminalidade estava contida, esse país está a desmoronar.
Aquilo a que eles chamam de “valores” – as religiões cristãs, a família nuclear, a ascensão pelo mérito – estão a perder-se. No mundo, a América é desafiada pela China e achincalhada pela Rússia, e não consegue ganhar nenhuma guerra em que se mete; em casa, a criminalidade e a pobreza aumentam a olhos vistos, até o Presidente é negro e o Estado cada vez mais policial. Há uma sombra sinistra que se espalha pelo céu azul dos valores certos e estabelecidos, como que a anunciar o Armagedão.
Para estes senhores, as mudanças climáticas são uma treta, um sistema de segurança social uma pouca-vergonha e os ricos não deviam pagar impostos, porque são os ricos que impulsionam a economia
Portanto, um homem que tem instintos básicos para identificar todos os perigos e fulminar todos os demónios, com instinto mediático e sem medo de dizer o que pensa, parece o redentor que vai afastar as dúvidas, o relativismo moral e os marginais que estão a destruir o país. Um homem que vai expulsar os indesejáveis que atulham o mercado de trabalho, falar de cima para baixo aos chinocas e comunistóides, e pulverizar os terroristas islâmicos que os querem matar a todos, violar as mulheres e obrigá-los a uma religião infame.
A outra variável que perturba os velhos republicanos é a falta de candidatos credíveis. Tanto Marco Rubio como Ted Cruz, os dois que ainda restam na corrida, são fracos. Têm os valores certos, mas não convencem. Rubio é um cristão devoto, quase medieval, com um discurso desactualizado que nem consegue ser percebido pela população urbana. Além disso já mudou de ideias em questões fundamentais, como a imigração, conforme pensa no que o eleitorado quer. Ted Cruz é detestado pelos seus colegas senadores, que o vêem como um manipulador barato cuja palavra não vale um caracol. Ou seja, por mais perigoso e impalatável que Trump seja, o establishement republicano não preparou a tempo nenhum outro candidato com massa crítica e ideias aceitáveis que lhe possa fazer frente.
Finalmente, há que levar em conta que os grandes financiadores do Partido Republicano são os irmãos Koch, donos da segunda maior empresa privada dos Estados Unidos (petróleo, produtos químicos, plásticos, etc), e Sheldon Adelson, dono de casinos no Nevada e em Macau. Para estes senhores, as mudanças climáticas são uma treta, um sistema de segurança social uma pouca-vergonha e os ricos não deviam pagar impostos, porque são os ricos que impulsionam a economia. Embora Trump seja demasiado obsceno para os seus pontos de vista, certamente que preferem por os seus milhões nele perante o perigo doutro mandato democrata. Os republicanos mais moderados não se podem permitir a contrariar Koch e Adelson, que contam com mais de 50 por cento do financiamento do partido.
Pois é, o Partido Republicano está numa encruzilhada. O que quer dizer que os Estados Unidos também estão, uma vez que o equilíbrio entre os dois partidos tradicionais tem sido, há duzentos anos, o equilíbrio do sistema político. Se perder vergonhosamente, haverá uma hegemonia excessiva dos democratas, o que não é bom – os democratas também não são nenhuns santos, mas isso é outra conversa. Se ganhar, a terceira Guerra Mundial será uma possibilidade mais séria, para não falar nas iniquidades que ocorrerão nos Estados Unidos.
Então, se os Estados Unidos estão numa encruzilhada, o que será de nós, europeus, que também não estamos a saber governar-nos?
Num mundo ideal, todo o planeta poderia votar para a presidência norte-americana, já que lhe sofre as consequências.
O que vale é que a colonização da Lua está em andamento.
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