Depois da polémica desta semana com uma piada do João Quadros, veio à baila – mais uma vez – a eterna questão: o humor tem limites? É esta a pergunta que fazem, sempre, a todos os humoristas em todas as entrevistas que lhes são feitas. Sempre. A resposta é, invariavelmente, a mesma: NÃO! Grande e redondo. Apesar de todos terem tipo de humor diferente e de terem os seus próprios limites e, muitas vezes, nem apreciarem o trabalho uns dos outros, a resposta é unânime. Não devem, nem podem impor-se limites ao humor. No entanto, a opinião de um humorista sobre este assunto é parcial. É como perguntarem a um padre se Deus existe: ele irá dizer sempre que sim, caso contrário está a prejudicar o seu ganha-pão.
Apesar de andar nisto do humor há pouco tempo, a minha opinião é a mesma e vou tentar explicar porquê. Vou começar por falar no programa de humor mais ofensivo que já foi feito até hoje na televisão portuguesa. Aposto que já sabem de qual estou a falar, certo? «Os Malucos do Riso», exatamente! «Os Malucos Do Riso» gozavam com doenças, mentais ou físicas, com ciganos, com alentejanos, com loiras e mulheres no geral, com todo o tipo de estereótipos e, pior do que tudo, chegaram a ter o Gustavo Santos no elenco. Ah, piadinha fácil. Não resisti. No entanto, nunca ouvimos dizer em relação a este programa «Com coisas sérias não se brinca!» que normalmente é o que as nossas avós dizem e, curiosamente, eram elas o público alvo de «Os Malucos do Riso». Sempre achei essa frase estranha, porque sempre me guiei mais por «Rir é o melhor remédio» e sempre achei que fossem as doenças mais sérias as que mais precisam de medicação.
Mas tomemos como hipótese que com coisas sérias não de deve brincar: quem é que define o que são coisas sérias? Pela minha curta experiência, já fui ameaçado de porrada e de morte por fazer piadas com muitos temas, como por exemplo: futebol, religião e sushi. Sushi! Por isso, parece-me óbvio que definir temas proibidos - já que dependem da sensibilidade de cada um – é um erro, já que a subjetividade é tanta que tudo seria passível de ser considerado ofensivo. «Temas tabu deviam ser os que causam sofrimento a pessoas!», dizem alguns. Certo, mas, nesse caso, o futebol seria intocável porque causa sofrimento, especialmente a quem é do Sporting como eu. A meu ver, morte é a maior fonte de sofrimento e, lamento informar-vos, todos vamos morrer. Por isso, gozar com a morte é rirmos da nossa própria desgraça porque a vida é uma doença terminal. Chupa, Chagas Freitas! Fazer piadas com a morte é o mesmo que um humorista gordo fazer piadas com a sua própria barriga. No fundo, o humor com tragédias em pano de fundo é um humor autodepreciativo que tenta camuflar o nosso próprio sofrimento. Pelo menos, é assim para mim.
Primeiro, acho que o sofrimento causado por uma tragédia é infinitamente superior ao sofrimento causado por uma piada. Traduzindo para linguagem matemática isto que dizer que infinito mais um é igual a infinito. Nunca ouviram dizer «Epá, o Holocausto foi horrível por causa dos milhões de mortos e por causa das piadas que se fizeram.». Não. A piada nunca aumenta o sofrimento de quem está a viver uma real tragédia porque esse sofrimento já é máximo. Segundo, definir o que é tragédia é sempre ambíguo. Mel Brooks disse que «Tragédia é quando eu me corto num dedo, comédia é quando tu cais num esgoto e morres.». Isto é uma hiperbolização do que acontece no nosso cérebro. Nós rimos com (e não da) desgraça dos outros nem que seja de alívio de não sermos nós a passar por ela. Quando vemos um vídeo de um gajo a cair de skate com a fronha no chão não pensamos «Coitado, ficou com a cara em papa e agora só arranja trabalho num call center sem vídeo chamada!». Não, nós rimos! Não queremos que lhe aconteça nada de mal, mas não fomos nós e, então, rimos.
Essa ambiguidade do que é tragédia percebe-se com as doenças: porque é que podemos gozar com umas doenças e outras não? O cancro continua a ser um dos temas mais sagrados, mas há milhares de pessoas que morrem todos os anos com gripe. Será que não podemos fazer piadas com espirros? É estranho, até porque para uma pessoa que morre de gripe, a gripe é mais grave do que o cancro o que prova que é tudo muito relativo. E, mais uma vez, fazer piadas com o cancro é fazer piadas com nós mesmos porque todos temos medo de morrer dessa doença ou de ver alguém que nos é querido ser levado por ela. Dizem que daqui a dez anos uma em cada duas pessoas terá cancro, por isso uma piada com cancro acaba por ser rir da nossa própria angústia.
Há quem conceda isto e diga «Ok, então não há temas sagrados. O que há é mau timing!». Too soon, dizem nos comentários, amiúde. O too soon é uma hipocrisia porque são as pessoas que não estão envolvidas na tragédia a dizer «Olha, faz antes a piada para a semana que agora sinto-me mal em rir disto.» Uma mãe que perdeu um filho nunca irá dizer too soon. Para quem está realmente a sofrer, o tempo não é linear e por isso, quem diz too soon é quem realmente fica indiferente com o sofrimento dos outros e só quer tranquilizar a própria consciência.
O conceito de too soon é suportado por uma frase do Mark Twain: «Comédia = Tragédia + Tempo». Isto faz sentido se pensarmos naquela vez que nos baixaram as calças no recreio e que foi uma tragédia na altura, mas agora, pensando nisso, faz-nos rir. Do ponto de vista de um humorista isto não faz sentido nenhum porque uma piada parte sempre de uma premissa que tem de ter carga, seja negativa ou positiva. Exemplo: vou contar-vos agora uma piada sobre um gajo que esfaqueou a mãe em Melgaço em 1998, lembram-se? Não? Ninguém? Pois, a premissa perdeu a carga e a piada, por muito boa que fosse, ia ter menos piada do que no dia da tragédia. Aliás, isso é fácil de provar matematicamente:
Se Comédia = Tragédia + Tempo e assumindo Tempo = 0 (dia da tragédia)
Ficamos com Comédia = Tragédia
Logo, quanto maior a Tragédia, maior a Comédia.
Já sei que as unidades são diferentes, mas não se armem em nerds e deixem-me provar o meu ponto. Colocando esta equação num sistema com a outra que dizia que Tragédia + Piada = Tragédia, chegamos à conclusão que este exercício é parvo e que o humor não é matemático e é, acima de tudo, tremendamente subjetivo.
Tenho um exemplo prático que comprova que a proximidade à tragédia, tanto espacial como temporal, muitas vezes não quer dizer nada. Há uns tempos, recebi uma mensagem de uma senhora que me perguntava por que é que eu não fazia mais piadas com o cancro. Confessou-me que tinha acabado de chegar a casa depois da primeira sessão de quimioterapia e que precisava de se rir da doença. Disse-lhe, «Minha senhora, não faço muitas piadas com cancro porque tenho imensa empatia por quem tem cancro, já que, também estou a sofrer imenso devido a umas entradas e estou com medo de ficar careca.» Ela riu-se como as senhoras se riem no Facebook «kakakkakakakaka» e agradeceu-me. Senti-me pequenino e percebi o verdadeiro impacto do humor: aquela senhora, no momento de maior sofrimento e angústia, precisava de dizer ao cancro que lhe podia levar tudo menos a alegria e a vontade de rir. Ela precisava de dizer ao cancro: vem com tudo contra mim que eu vou dizer que são apenas cócegas e vou rir-me de ti. Há duas formas de olhar para esta minha piada: uma é achar que eu estou a diminuir o sofrimento de quem tem cancro comparando com o meu sofrimento por estar a ficar careca; outra é perceber que eu estou a ridicularizar as minhas inseguranças fúteis por estar preocupado em ficar careca quando há pessoas a passar por isso por razões muito piores. E, para mim, é sempre desse fundo que vem a piada. Acho que nenhum humorista vai para humorista porque quer irritar pessoas, para isso ia trabalhar para a EMEL.
Tem ou não piada? Isso é outra conversa. Para mim tem, para muita gente não terá e ainda bem. É mais do que justo que muita gente não ache piada, mas aquela piada foi feita para aquela senhora e ela riu-se. Podem vir mil pessoas a dizer que é ofensiva que já nada vai tirar validação à piada que aquela senhora lhe deu e que era a única que interessava para além de mim.
Por isso, acho que a única coisa que pode delimitar uma piada é a sua intenção. A piada em si não discrimina e a intenção vem do contexto, também. Lembram-se quando o Trump fez uma imitação de um jornalista deficiente? Todos ficámos chocados com aquilo e, no entanto, já quase todos nos virámos para um amigo e dissemos «És mesmo duh!», fazendo um gesto de mãozinha deficiente a bater no peito. Quanto a mim, parece-me claramente que, embora a forma e conteúdo sejam os mesmos, o contexto e a intenção mudam tudo. Primeiro, Trump era candidato à presidência e estava a falar publicamente e, depois, o único objetivo do que ele fez era ridicularizar e descredibilizar um jornalista com base na sua deficiência física. No segundo caso, a intenção é só achincalhar um amigo e nunca ofender alguém com deficiência, até porque não estava nenhum deficiente presente para ficar ofendido. E, se pensarmos bem, pode ser só parvo e sem piada, não estou a dizer o contrário, mas a intenção é totalmente diferente e isso é que deveria ser o foco do julgamento das pessoas.
Por fim, há outro fator determinante quando se é o recetor de uma piada que é o nível de empatia que temos para com a pessoa que a disse. Depende se é vosso amigo ou não, se for humorista depende da ideia que têm dele ou dela enquanto pessoa e do quanto gostam ou não do seu trabalho. Quando ouvem uma piada que consideram ofensiva, façam o exercício de imaginar que foi o vosso melhor amigo a dizer num jantar e vão perceber que a vossa reação será ou achar piada, ou não achar piada e seguir em frente com a conversa. Nunca vão achar que ele tem a pior das intenções e que se regozija com o sofrimento alheio. Vão achar que foi só uma saída parva. Uma boca ao lado. Faz parte. Não é preciso entrar em ondas de indignação e ofensas, embora quem o faz esteja no seu direito e não faz sentido ficarmos ofendidos por os outros ficarem ofendidos. É o chamado paradoxo da indignação.
Para mim, o humor vem da empatia com o que se passa à nossa volta e o humor com temas mais sensíveis ainda mais. Se eu for na rua e passar por um sem abrigo e, de seguida, fizer uma piada com isso, quer dizer que eu reparei naquele sem-abrigo e que de algum modo me afetou ao ponto de ter de sacudir com uma piada. Para mim, pelo menos, é assim que funciona o humor. A meu ver é muito pior passar pelo sem abrigo e nem reparar nele. E isto não quer dizer que não haja humoristas psicopatas sem qualquer empatia pelo sofrimento alheio e que estejam mais preocupados em chocar do que em fazer rir. Também os há, claro, mas à partida um humorista que não faz rir e só choca, não vai ter público e deixa de ser humorista. O universo sabe equilibrar-se. Uma piada de mau gosto não existe. Uma piada pressupõe efeito na audiência de fazer rir e se fez rir não é de mau gosto. Se não fez rir, não é uma piada. É só um comentário de mau gosto.
Por tudo isto, e como diz o Ricardo Araújo Pereira, o humor só pode ser limitado pelas mesmas leis da liberdade de expressão que existem precisamente para podermos ofender e incomodar os outros. Se o humor difere de outros tipos de discurso é de ter de ser privilegiado e gozar de ainda mais liberdade até porque existe uma coisa chamada ironia que nem todas as pessoas sabem identificar.
Por exemplo, o sketch do Gato Fedorento, O Gajo de Alfama, está repleto de ironia que torna o alvo do texto exatamente o oposto do que é dito. Aquelas palavras ditas num contexto não humorístico, digamos, por um político em campanha para as autárquicas em Loures, pode ser considerado discurso de ódio e incentivo à discriminação e, aí sim, crime segundo a lei da liberdade de expressão. Caso contrário, entramos num campo perigoso da censura subjetiva em que o simples facto de alguém estar ofendido limita o que os outros dizem. E, acreditem, ninguém quer viver numa sociedade assim porque diz-se e, a meu ver, bem, que a ofensa nunca é dada, é sempre tomada. Quando alguém nos chama nomes no trânsito, só ficamos ofendidos se quisermos, mesmo que a abécula do outro lado se esforce muito. Por exemplo, costumo dizer que 99,9% das pessoas é burra e nunca ninguém se ofende porque toda a gente a quem digo pensa que faz parte do restante 0,1%. Ou seja, mesmo eu tentando ofender 99,9% das pessoas não consigo porque elas escolhem não tomar a ofensa para elas.
Resta-me dizer que os humoristas também choram muito. A liberdade de expressão vai para os dois lados e se existe o meu direito a ofender, tem de haver o direito a que me ofendam de volta e, sinceramente, para quem acha que faz um humor subtil e inteligente com um tema delicado, se não houver gente ofendida é mau sinal. Dito isto, quem escolhe ficar ofendido com uma piada é parvo e quem vai da ofensa à ameaça tem problemas mentais. Façam scroll e vão à vossa vida e nunca mais vejam ou leiam nada do que aquela pessoa diz ou escreve. Simples. Toda a gente fica contente.
Voltando a fazer a pergunta: existem limites para o humor? Sim. Os limites do humor existem, mas são pessoais e intransmissíveis. O humor tem limites, mas não cabe a ninguém impô-los.
Sugestões e dicas de vida:
Quando pensarem que uma piada não é inteligente, lembrem-se que pode ter sido tão inteligente que vocês não a perceberam.
Sem as piadas más, não existem as piadas boas. Um humorista precisa de dar uns tiros ao lado para depois acertar no porta-aviões.
Leiam o livro “As Figuras de Estilo da Língua Portuguesa” para evitar futuras confusões.
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