A ideia começou não se sabe bem onde, mas espalhou-se como fogo pelos quartéis e pelos barbeiros deste país: uma pessoa desfaz a barba, não a faz. Uma barba sai da cara: por que razão dizemos que é feita nesse momento? Esta lógica impecável obrigou muita gente a começar a dizer «desfazer a barba» ou a refugiar-se na alternativa «cortar a barba».
Trago uma boa notícia: as palavras podem ter vários significados. Aliás, raríssimas são as palavras com um significado sólido, único, imutável. Todas as línguas são assim. Não é um problema dos portugueses: é feitio dos seres humanos. Os humanos aqui do lado, por exemplo, usam a mesma palavra para «sono» e «sonho» («sueño»). Confuso? Ora, nós dizemos «sono» para a vontade de dormir («tenho sono») e «sono» para o estado de quem está a dormir («sono profundo»). Faz confusão? Só a quem não fala português.
Pois bem: quando chegamos aos verbos, temos de reconhecer: muitos destes bichos variam de significado de acordo com a roupagem. O verbo «tirar» significa uma coisa em «tirar o prato da mesa», outra em «tirar a pinta», outra ainda em «tirar uma fotografia»... O verbo «dar» não é exactamente a mesma coisa em «dá três passos», «dá um presente», «dá uma cambalhota», «não dá uma para a caixa»...
Da mesma forma, o verbo «fazer» muda de significado em frases como «fazer um texto», «fazer a cama», «fazer tempo» e «fazer a barba» — são apenas exemplos: o verbo é ainda mais variado do que parece.
Não se trata de significados alternativos a um significado principal: todos são significados perfeitamente legítimos! Por que carga de água «fazer um texto» (escrever) ou «fazer a cama» (arrumar) hão-de ser significados mais legítimos que «fazer a barba» (cortar)? Aliás, em todos os casos, se virmos bem, fazemos alguma coisa, no sentido de acção...
Enfim, o certo é que a utopia da língua bem-comportada, com um só significado por palavra, seduz muita gente. No entanto, lamento informar, as línguas humanas não são feitas a regra e esquadro. Há palavras com muitos significados, há conceitos expressos por várias palavras, há desarrumações em todos os recantos do léxico e da gramática. Mesmo que conseguíssemos, depois de muito trabalho, limpar estas belas confusões, rapidamente os nossos cérebros começariam a inventar novos significados para as coitadas das palavras.
Note-se: as palavras têm muitos significados, mas não têm qualquer significado: têm os significados que vão ganhando ao longo do tempo, devagarinho, no uso de uma língua pelos séculos fora. Não posso dizer que «fazer um livro» significa «ler um livro». Mas posso dizer que «fazer a barba» significa «cortar a barba». Por outro lado, não posso simplesmente declarar que um significado tem de deixar de existir só porque sim. «Fazer a barba» é uma expressão que faz parte do português, queiramos ou não (e não vejo razão nenhuma para não querer). A língua não se faz à vontade do freguês. Faz-se à vontade do uso de milhões de fregueses, ao longo de muito tempo. O rigor também é isto: não impor o mais absurdo dos simplismos ao funcionamento da língua.
Enfim, neste como noutros casos, estou convencido que estamos perante um exemplo de chico-espertice. Alguém encontrou uma palavra com vários significados (a coisa mais banal do mundo!) e viu aí uma oportunidade de brilhar. Imagino mesmo o chico-esperto, na rua, a parar e a bater com a mão na testa: «A barba não se faz!» Quando vai ao barbeiro, dias depois, já vem com o sorriso espertalhão na boca: «Já repararam que a barba não se faz? Desfaz-se!» Pronto: está armada a confusão.
Como piada no barbeiro, dizer que «fazer a barba» é erro não faz mal a ninguém. Como ideia sobre o funcionamento da língua, é um grande disparate.
A barba faz-se, tal como a cama e o tempo — cada um à sua maneira. As línguas são assim: matreiras e muito interessantes.
Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. É autor do Atlas Histórico da Escrita. O texto acima já tinha sido publicado anteriormente.
Comentários