Não discrimino pessoas pela sua cor de pele, nem pela sua orientação sexual. Também não discrimino pessoas devido às suas crenças religiosas já que trato todas as religiões por igual: acho que são todas uma treta. No entanto, tenho de admitir que discrimino pessoas pelo facto de falarem alto aos telemóveis em espaços públicos e sempre que vejo alguém a fazê-lo, com um volume acima daquilo que o bom senso dita, penso, automaticamente, que essa pessoa, além de ter o QI de uma criança com défice de aprendizagem, é um mau cidadão.
Sei que estas regras de etiqueta são, muitas vezes, parvas, e todos nos regemos por elas porque sempre assim se fez e não passam de constrangimentos sociais que fomos formando e adquirindo ao longo dos anos e do afastamento humano que o mundo foi tendo. Todavia, esta frase filosófica e profunda não invalida o facto de quem fala alto no telemóvel na rua, restaurantes ou transportes públicos ser, muito provavelmente, um palerma. Há sempre quem diga “Não devemos julgar as outras pessoas” e quem diz isso, por norma, é quem mais julga os outros com base nas primeiras impressões. Claro que devemos julgar as pessoas, especialmente se formos juízes. Peço desculpa por esta piada, mas estava aqui mesmo à mão.
Acontece o mesmo com quem ouve música sem auscultadores, achando que é um DJ ambulante que tem como missão neste mundo preencher os silêncios da vida das pessoas com música. Até podia ser uma missão nobre, não fosse o facto de estes DJs de vão de escada terem sempre o gosto musical de um animador de carrinhos de choque. Até sinto o cheiro a fartura quando eles passam, tal é o óleo que lhes escorre por todos os poros.
Ontem, vinha de comboio do Porto para Lisboa, quando, ao meu lado, se senta uma mulher na casa dos quarenta; aparentava ser uma pessoa normal, mas passados dez minutos de viagem, já eu estava perto de adormecer embalado pelos carris, sou acordado em sobressalto com um riso daqueles de labrego e com uma voz estridente, mas com aquele travo a bagaço: “Ah ah ah, e eu fumo a merda e tu fumas da boa, é isso? Foda-se!”. Era a senhora, aparentemente normal, que se tinha transformado numa vendedora de peixe do Bolhão. Atenção que não tenho nada contra essas senhoras, mas há um local para ser peixeira do Bolhão que, por acaso, é o mercado de peixe do Bolhão, e há outros para não se ser assim, que são praticamente todos os outros onde há pessoas que podemos incomodar. Podia dar-se o caso de ser picuinhas, mas não fui só eu a olhar para a senhora de lado com aquele franzir de sobrolho em tom de desaprovação. Lá continua, sempre naquele volume de quem está a tentar comunicar com alguém que está longe e segue-se esta conversa:
“Depois temos de ver aquilo, temos de ver quem é que fica e quem é que vende. Vamos vender a quanto? 15? 20? Temos de ver a nossa comissão, mas olha que eu não quero ficar com aquilo tudo lá em casa.”. Olha, a falar abertamente de tráfico de droga, pensei. Faz sentido, para um vendedor todas as ocasiões são boas para vender e alguém podia estar a ouvir e ir pedir o cartão de negócio no final. A senhora continua “Sim, porque o cabrão do meu pai andava a vender aquilo a 30 e depois estraga o negócio, mas esperto é ele, que isto é mesmo assim.”. Olha, negócio de família de tráfico de droga, pensei. Continua: “Eu até gosto do cheiro, se calhar vou ficar com algum para mim”. Era óbvio, neste momento, que estavam a falar de droga e que “cheiro” se referia a cocaína. Achei 15€ barato. A arara de penagem curta continua a grasnar “Eu se calhar vou ficar com o Yves Saint Laurent para mim que o perfume cheira muita bem!”. Ahhhh, afinal eram perfumes. Venda ilegal de perfumes, mas apenas perfumes, a não ser que Yves Saint Laurent fosse código para “Colombiana” ou algo do género.
Enquanto a senhora ia falando alto e toda a gente olhava e comentava entredentes, fiz uma introspeção e lembrei-me de uma vez, num comboio de Paris, em que um francês se virou para mim e me mandou calar fazendo apenas o som “Shhhhhh”. Pensei “Será que eu já fui este tipo de labrego?”, mas depois lembrei-me que nessa altura estava a falar num volume normal para um português e que os franceses são uns choninhas. A senhora continuava a falar, mas agora que tinha descoberto que não era tráfico de droga, o interesse da conversa tinha diminuído e já me estava a incomodar. Estamos sempre a queixar-nos da pouca cobertura das redes de telemóvel durante as viagens de comboio, mas ali deu-me jeito. A senhora ficou sem rede durante um bom bocado e teve de desligar a chamada. O silêncio apoderou-se da carruagem e tentei dormir um pouco. Quando já estava ferrado, acordo com a voz da senhora “Ah ah ah, estou quase a chegar! Já estás aí à minha espera ou tenho de falar com o Fernando?!”. Roguei-lhe todas as pragas e percebi que o comboio estava mesmo a chegar à estação do Oriente. Portanto, se não fosse a senhora eu poderia não ter acordado na minha paragem e tinha ido parar ao Pinhal Novo ou assim. Por isso, obrigado à senhora. Moral da história: por vezes, há coisas irritantes que nos podem dar jeito.
Sugestões e dicas de vida completamente imparciais:
Para rir: Espectáculos de stand-up comedy de Bruno Nogueira e Luís Franco-Bastos
Para ver: Triangle
Para fazer: Começar a pensar em temas para arranjar discussão com a família no Natal.
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