Caras iguais para evitar confusões são menos frequentes que caras diferentes confundidas. Vou contar uma história que não presenciei e que só tem piada exactamente por eu não estar lá. Nunca tive o prazer de me cruzar com o realizador Miguel Gomes, mas amigos comuns contam-me que certa vez alguém o confundiu comigo. Um chato teimava tanto com o Miguel, acusando-o de ser o Samuel Úria, que a determinada altura só restou ao realizador ceder e concordar com a identidade que lhe estava a ser martelada. Gosto desta história porque colocou alguém que admiro a assumir o meu nome. É verdade que o engano terá sido motivado pelos bigodes esguios que, tanto o cineasta como eu, usávamos na altura, mas ainda assim há coisas menos gratificantes do que sermos confundidos com quem muito admiramos – sou fã, e a revista Les Inrocks afinal não me deu nenhuma novidade quando agora incluiu o “Tabu” do Miguel Gomes na lista curtíssima de melhores filmes do século.
Não é na história dos bigodes semelhantes e dos retratos iguais que assento a ponte entre Pedro Dias e Miguel Gomes, embora também haja um bigode (em nada semelhante) e um retrato (que se quis desigual) nessa ligação. Na magnífica trilogia “As Mil e Uma Noites”, Gomes filma, revê e inventa Portugal sob os efeitos da austeridade, mas é num episódio dentro do “Volume 2: O Desolado” que ele empresta o olho mais árido e desencantador, forçando-se a ver exactamente aquilo que o país não pôde. Fá-lo na história do assassino foragido “Simão Sem Tripas” que, sendo uma óbvia réplica de Manuel Baltazar “Palito” (o bigodudo homicida de Valongo dos Azeites), acaba inadvertidamente por se configurar numa espécie de proto-Pedro Dias. Naquele relato, que pouco parece ter de parábola, há muito espaço e poucas palavras e, talvez por fugir a simplismos políticos (coisa de que a trilogia nem sempre está inocente), é onde as reflexões sobre a culpa, consciência e sobrevivência têm lugares mais amplos para acontecer – se foge o personagem, não podemos fugir nós.
Vou abster-me de descrever até que ponto o episódio de Simão Sem Tripas/Palito é um trunfo para o filme, mas asseguro que é um trunfo para a história real de Manuel Baltazar. Decantou-a sem a enaltecer. Miguel Gomes contrariou um dos mais graves desperdícios que tem sido apanágio deste país (e não falo de deitar embalagens de leite para a reciclagem de papel, nem de pagar sacos plásticos novos no Pingo Doce): soube aproveitar com propósito e, sobretudo, com qualidade as histórias ricas e reais dum Portugal bruto e cruel.
É possível que eu esteja tão equivocado e distraído quanto alguém que confunde duas pessoas diferentes, mas mantenho: parece-me flagrante o subaproveitamento das histórias de violência deste país. Não sou, de todo, um defensor da exploração gratuita da brutalidade, ainda menos no que toca ao entretenimento, só que o inverso - a absoluta contenção - surge-me como algo perigoso e pernicioso. Apesar de tudo, soa muito mais a “semear violência” quando colectivamente nos habituamos a enterrá-la no rol de memórias silenciosas – e acreditem, a chuva também chega a esses vasos. Não haverá nada de errado em querer perpetuar a martelo a noção do “país de brandos costumes”, e não consigo argumentar contra o facto de preferirmos encerrar nos telejornais as nossas histórias de violência, mas há muito de errado num país desinspirado no seu entretenimento ou na sua ficção, sobretudo se existem pérolas da realidade à mão de semear.
Ninguém mais acha estranho que nunca se tenha feito um filme ou uma série sobre as FP25? Uma história de brutalidade, mortes, tramas políticas, assaltos a bancos, atentados bombistas, crianças como danos colaterais, arrependidos e chibos - como é que isto nunca ganhou galões de entretenimento sério? Talvez restem pudores políticos num país que parece ainda só conseguir vilipendiar a faixa direito dos extremismos. Mas e se falarmos da saga inacreditável dos irmãos Cavaco, qual a desculpa para não se ter transformado num filme inacreditável? E a história horripilante de Vítor Jorge, vulgo “Mata 7” do Osso da Baleia, como é que isso nunca desembocou numa série horripilante? Só dei exemplos que me são contemporâneos e não sou assim tão velho. Em 30 anos temos o nosso Son of Sam, o nosso Norman Bates, os nossos irmãos Dalton, o nosso IRA, como é que não temos também esse reflexo na produção de cinema e televisão?
Podem advogar que o género policial não tem grande tradição no entretenimento português, mas isso devia ser mais um alarme do que uma justificação. Se andamos há 15 anos a tentar fazer funcionar a stand-up comedy na nossa língua, com raríssimos bons resultados, não é esfarrapado menosprezar esforços votados ao policial, ainda para mais com tanto terreno verídico por explorar? Não estou a ignorar casos esporádicos do cinema nacional, nomeadamente filmes de António-Pedro Vasconcelos, mas até este é um exemplo de alguma descoordenação entre o policial moderno e o cinema português de apelo comercial – basta pensar que o último do realizador, “Amor Impossível” (provavelmente o mais bem conseguido que fez em anos) tem na parte policial da trama o lado mais vulgar, dispensável e desinteressante. Também não será aquele cão inspector (um pastor alemão que parece ladrar em austríaco), nem a série Polícias escrita pelo Moita Flores (como se alguma vez o Luís Esparteiro pudesse acumular as funções de super-agente e de super-pai) a salvar a honra do convento, ou da esquadra, ou do local do crime.
Não trago só elogios ao Miguel Gomes. No primeiro volume das Mil e Uma Noites (“O Inquieto”) há um episódio onde se parodiam as negociações entre o anterior Governo e a Troika. Embora encaixe na rapsódia de fragmentos desiguais da trilogia, esta paródia com politiquices, pulhices e priapismos à mistura, parece falhar na intenção de absurdidade satírica, e no recurso ao boçal como surpresa estilística. Quer fosse a troça ao serviço da Arte, ou a Arte ao serviço da troça, a verdade é que todo o segmento soava a teatro de revista glorificado. Se já apontei aqui Gomes como um agente de redenção no aproveitamento da realidade, vou usá-lo também para identificar o vício revisteiro a que culturalmente ainda estamos agrilhoados. O trocadilho e a caricatura continuam a comandar as nossas traduções da realidade; isso não seria tão mau caso não fosse tantas vezes mau, e tantas vezes tanto. Ainda ontem me ri a ver o actor Manuel Marques ser Manuel Luís Goucha, mas onde é que está o hiper-realismo cru, ou a literalidade literária? Onde estão estas coisas que tão visível e recentemente e se estabeleceram lá fora como Era Dourada da televisão? Podemos não ter disponibilidade financeira, nem aglomerado criativo para fazer séries como The Wire, The Sopranos ou The Night Of, mas quando o mundo já nos deu essas referências não podemos continuar enfiados eternamente em Vilas Faias. Neste preciso momento há walkie-talkies da GNR a dar abadas a diálogos telenovelísticos.
Não quero que entendam isto tudo como um exercício de futilidade. Não sou o tipo insensível que reduz a importância das tragédias nacionais ao potencial de entretenimento. Pelo contrário: acho a realidade demasiado importante para que possamos andar a descurar a maneira como nos entretemos. Não pode ser sempre escape, tem de ser confronto e desconforto, convite à reflexão e lembrete. Para além disso, há praticamente uma intenção de salvação nacional nestes meus reparos; já noutro dia aqui escrevi sobre a cultura popular que conquistou o mundo, quando o mundo se achava a conquistar a cultura popular, por isso vou assumir a temática como recorrente. Não me estou a lembrar de nenhum país com excelência e notoriedade na produção televisiva, ou no entretenimento cinematográfico, que esteja em profunda crise económica. À partida calculamos que a saúde financeira conduz à desenvoltura dessas produções. Mas, e se for o contrário? E se for o entretenimento apurado e adulto a rebocar a economia? Pode soar patético, mas nem uma UTAO me alarma tanto quanto uma grelha de programas.
Na verdade, espero mesmo estar enganado e que mo apontem, que me lembrem os muitos exemplos consistentes nacionais que ignorei, ou os países minguados que andam a arremessar bons produtos sérios de entretenimento (tenho respostas preparadas para quem me vier falar do Brasil). Estar enganado tem as suas virtudes: pode ser que um dia vos confunda com alguém que admiram. Vão gostar.
Sítios certos, lugares certos e o resto
Em complemento do que escrevi, espreitem a lista dos melhores 25 filmes deste século segundo a Les Inrocks, e onde estão incluídos “Tabu” de Miguel Gomes e “O Fantasma” de João Pedro Rodrigues. Coisa rara para mim neste tipo de listas: se é verdade que não concordo em absoluto, não me lembro de discordar tão pouco.
O Cristiano Pereira não só é um jornalista musical de excepção, como a sua recente incursão nos campos de refugiados gregos o confirmou como ser humano de excepção. Foi através dele que conheci o caso da família de Attaullah, com quem tem estado em contacto. Este não é só mais um drama particularizado, é todo o drama. E é toda a motivação que devíamos precisar para mexermos uma palha. Uma palhinha que seja.
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