Vão dizer que se ri de maneira desadequada, que se veste com uma farda, fato masculino, para lhe conferir autoridade; que não fez nada. Vão dizer e escrever sobre os seus penteados, a sua maquilhagem. Vão avaliar as jóias, as malas, os sapatos. Vão congeminar teorias sobre o projecto de família, a opção pela não maternidade e afins. Vão escrutinar o marido e os enteados.

E as ideias? Também serão vistas e revistas. Quando Donald Trump foi eleito o 45.º presidente dos EUA, muitas almas ingénuas surpreenderam-se e os queixos ficaram no chão. Como era possível?! É possível, porque a América não é a dos filmes. Não é Nova Iorque. Não é o melhor país do mundo, é um país como os outros, formado por pessoas com mais ou menos cultura, com discursos opostos, ideias radicais e pouca disposição para o diálogo. 

Kamala Harris chega à corrida tarde, dizem uns. Outros garantem que Donald Trump tem mais do que ela, sobretudo é caucasiano e homem. A escolha de Tim Walz para vice-presidente veio contrabalançar as coisas. Homem, branco, sólido, serviço militar cumprido, fortes ligações à comunidade, casado. Não poderia ser de outra maneira, era a única hipótese. Mais cedo ou mais tarde, alguém dirá que foi ele que fez a presidência, mais cedo ou mais tarde tratarão de diminuir a posição de Kamala Harris a favor de Tim Walz, ela sabe-o. Todas as mulheres o sabem. E, de novo, voltamos à necessidade do feminismo ativo, saudável, construído ao lado dos homens. 

A luta das mulheres na política é sempre um cenário de combate. Não tem fim, abrange contornos de avaliação que transcendem a política. A uma mulher pode-se acusar e apontar o dedo, a propósito de tudo. Se um homem tiver acusações de violação, é um garanhão. Se uma mulher gostar de sexo, é ninfomaníaca. E por aí fora, nem vale o exercício da explanação. Portanto, se uma mulher for eficaz, tem ajuda masculina. Se for assertiva, está bem apoiada. Este discurso tornar-se-á comum para Kamala Harris, ela terá de o desvalorizar, porventura denunciar. Porque andámos muito caminho, mas somos ainda uma sociedade patriarcal, sobretudo nos Estados Unidos. 

Na velha Europa, Donald Trump é um boneco alaranjado de mau gosto. Na América, para milhões – atenção, milhões – de pessoas é o futuro, um herói. O que pode Kamala Harris contra este estado de coisas? Esperamos que muito. E ela tentará, ao mesmo tempo que terá de se desviar das balas dos snipers dos costumes, da moral e do machismo vigente. 

P.S.: Entretanto, o nosso partido comunista saúda a vitória de um ditador e é criticado pelo partido comunista venezuelano. Pergunto-me: os comunistas portugueses sabem alguma coisa que o mundo não saiba? A isto chamo suicídio político e nem precisou de ser assistido. Boa sorte, camaradas.