Quando proponho esta experiência pretendo, por norma, criar a suspeita de que a relação entre aparência e idade tem vindo a alterar-se, criando mais velhos cada vez mais novos, e que isso não é uma mera ilusão de óptica, ou logro de percepção; para além das mentalidades, também em coisas físicas os 30 são os novos 20, os 40 os novos 30, e por aí fora. Se houvesse um aprofundamento rigoroso do tema, acredito que se tornaria interessante, mas não tenho como objectivo nem o aprofundar nem o interessar. A razão deste mote é outra, já que o meu contraponto dos anos 80 ao cinquentinho Brad Pitt costuma ser um cinquentão que ontem, quase com 90 anos, nos deixou: Moore, Roger Moore.
Sei que isto parece a pior das homenagens, mas enganam-se. Quando sugiro um Roger Moore menos esculpido que o ex-marido da Angelina Jolie estou, na verdade, a embarcar numa sentida homenagem. Se o futuro próximo nos reservar filmes com um Brad Pitt , de porte atlético, a salvar o mundo, não me parece motivo para grandes espantos. Mas também o Roger Moore com quem cresci, o dos 3 filmes do 007 nos anos 80, salvava o mundo sem causar grandes espantos, mas sempre a arrancar grandes divertimentos. E não era atlético, chegava até a ser trôpego em certos movimentos. Tão pouco dado era à brusquidão de algumas cenas que, juro, já começávamos a conhecer de cor a cara dos duplos do Sir Moore. Sem espanto, com divertimento.
Onde está pois a homenagem, se torno a realçar a madureza daquele James Bond envelhecido? Está aí, na falta de forma, porque Moore foi o melhor a não ser forma, antes a ser uma ideia de Bond. Dos 6 actores que interpretaram o espião britânico no cinema, Roger Moore (Bond trivia nº 1 – Moore foi o único actor mais velho que os seus antecessores a assumir o papel do 007) nem sequer era o que tinha as melhores qualidades de representação; não era o mais fiel à personagem idealizada por Ian Fleming e não é, globalmente, o preferido do público. Mas foi a melhor ideia de Bond, o homem que conseguia estar ao serviço de Sua Majestade com um mero menear de sobrancelhas, o mais verdadeiro a prestar-se a situações inverosímeis.
Roger Moore é o meu preferido de todos os James Bond. Sei que é uma coisa impopular, quase inculta de se dizer, e que agora soa a um aproveitamento forçado da notícia da morte do actor. Na verdade, já saí publicamente do armário em relação a Moore há mais de 10 anos. Num dos blogs que mantive entre 2006 e 2010, havia uma rubrica chamada “Licença Para Matar Caducada” onde fazia posts curtos sobre os actores que tinham passado pelo papel do espião. Foi lá que confessei: “Sean Connery tornou-se o meu Bond preferido no dia em que comecei a fingir que não prefiro o Roger Moore”. Sei que há mais gente da minha geração que partilha do enamoramento por Moore, mas que caiu na esparrela clássica de dizer que Sean Connery (Bond trivia nº2 – Connery usou capachinho em todos os seus filmes da saga 007) é o melhor, como se “melhor” fosse um critério assim tão importante.
Roger Moore, mesmo fora de forma (e ainda assim muito mais em forma que os seus comuns contemporâneos), estava sempre dentro da ideia. Havia a noção constante que o James Bond de Roger podia “romper a 4ª parede” a qualquer momento, olhando directamente para câmara para nos piscar o olho (resquícios da sua personagem Simon Templar, em “O Santo”). Era uma espécie de tensão que aliviava - o maior dos paradoxos. Moore também conseguia essa rara proeza de manter-se elegante mesmo num registo caricatural, oferecendo graciosidade ao cartoonesco; nisto contraria e sobrepõe-se a outros Bond, que tentaram demarcar-se da inverosimilhança campy em que estavam envoltos. Com Sir Roger, a suspension of disbelief - a suspensão da descrença que, quando mergulhamos num filme, nos faz engolir o mais improvável dos cenários – tornava-se fácil, porque tínhamos no protagonista um aliado e um confidente: ele nunca nos escondia o segredo da grande improbabilidade das coisas.
Não acho que exista nenhum grande filme do 007, mas sou fã de todos. Até por isso, o meu actor preferido dos James Bond pode ter sido o que passou por filmes menos bons. A cumplicidade com Moore também me alargou a tolerância que não terei, por exemplo, com o actual Bond. Gosto do Daniel Craig (Bond trivia nº3 – sem contar com Craig, a média de alturas dos actores que interpretaram James Bond é cerca de 1,88m. Craig mede 1,78m) e o iconoclasta “Casino Royale” é um dos meus filmes preferidos da saga, mas aquela crueza sisuda que o actor empresta à personagem tira margem de conforto à nossa descrença. Num dos últimos e muito celebrados episódios de Bond, “Skyfall”, os plot holes - os buracos no argumento - são muitos, e o excesso de credibilidade trazido por Craig só os evidencia. Foi bem mais fácil engolir o improvável Roger Moore a andar de gôndola fora de água, ou a saltar de liana em liana gritando como o Tarzan, ou ainda a esmurrar um gigante com mandíbulas metálicas em cima dum teleférico no Rio de Janeiro.
Também nos anos 80, imbuído do fascínio pré-adolescente por violência no cinema, fui entusiasta dos filmes duríssimos onde Timothy Dalton encarnou James Bond (Bond trivia nº4 – o papel do 007 foi oferecido a Dalton pela primeira vez em 1969, mas só quase 20 anos depois é que este viria a assumir a personagem). Ainda assim, até pelo lado violento, Moore se manteve a escolha certa. Para um Bond duro e implacável como o de Dalton, uma licença para matar parecia tão banal quanto uma licença para vender bolacha americana na praia de Buarcos. Já com Roger Moore, o sedutor folgazão, a licença para matar era um calafrio de seriedade, um lado negro arrebatador a conferir profundidade àquele que menos se importou de ser caricatura. Quando a expressividade das sobrancelhas de Moore saía do modo “galã das boquinhas engraçadas” e dava lugar a um espião impiedoso ou vingativo, o espectador ficava exposto a qualquer coisa entre o assustador e o comovente. Então, como não preferir este que ontem nos deixou?
Quando eu tiver 50 e tal anos, e a disponibilidade física dum cinquentão do antigamente, ainda mais preferido se tornará o meu Bond preferido. Também nessa altura continuarei a desejar que a notícia “Roger Moore morre” seja aquilo que parece: uma aliteração sem fundo de verdade, uma gralha na imprensa. A pergunta é seanconneryana, mas serve os propósitos rogermooreianos: então não é suposto os diamantes serem eternos?
SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO
Algumas das melhores one-liners do Roger Bond.
Sir Roger M007E, também o melhor a ser invencível.
E o vídeo-obituário do Roger que, para além de Sir, era Santo.
Comentários