1. Tristeza não tem fim, a canção sabe, e nós com ela. Os últimos dias foram tristes no Brasil, três semanas depois de Marielle Franco ter sido executada, anos já desde que o Brasil entrou nesta espiral regressiva, opressiva, cada vez mais articulada nos poderes do Estado, legislativo, executivo e judicial. Portanto, há que repeti-lo cada vez mais: existe um país com tanto para dar errado há séculos, tanto abuso, tanta violência, tanto preconceito, um país que conhece a tristeza a esse ponto, e o que faz com ela é trazer encanto ao mundo.
Um país sobre o qual podemos começar por dizer que não fala a língua disforme dos ministros do Supremo que na quarta-feira recusaram o habeas corpus a Lula da Silva. Aquele juridiquês ufano, aquela exibição do vazio, aquela tortura da frase para que ela diga o contrário do que diz, e no dia seguinte permita ao juiz-mor precipitar-se no decreto que manda Lula para a cadeia até às 17h de hoje (21h em Portugal Continental).
Essa língua, a do juiz Moro, a da ministra Weber, não é a do país índio, negro, moreno, branco, amarelo, verde-e-rosa-Mangueira, azul-Portela-Filhos de Gandhi, que mora na rua, mora no morro, mora na selva, mora no samba, mora nos rios da maior floresta do mundo, e se chama Brasil.
2. O anti-pêtismo hoje em curso é, na melhor das hipóteses, uma cegueira, na pior, uma milícia de extermínio. Para os anti-pêtistas, neste momento, qualquer pessoa que não seja anti-pêtista é automaticamente pêtista, aliás, petralha. Acontece que há muita gente no Brasil, e fora, que não é pêtista mas também não é anti-pêtista, simplesmente porque ser anti é para coisas tipo fascismo, racismo, esclavagismo, xenofobia, homofobia, misoginia. No Brasil e fora do Brasil.
Não tenho qualquer simpatia pelas alianças que o PT fez nos tempos de Lula-Dilma. As facilidades dadas ao agronegócio, às mineradoras, aos projectos de poder pentecostais, aos capitalistas selvagens, a várias espécies de retrógados, corruptos, oportunistas fortaleceram núcleos que hoje destroem o Brasil. Incluindo o usurpador patético que está na presidência da república (e era vice de Dilma) ou o “bispo” sinistro que é prefeito do Rio de Janeiro. Eis o drama do lulismo, ter dado esse tiro no pé do Brasil com que o próprio Lula sonhava, e sonha. A esquerda pêtista alimentou aqueles que depois a devoraram. Boa parte dos que agora devoram o Brasil. Subestimou o preço pago pela “governabilidade”.
Isto dito, apesar de tudo, não esquecendo a corrupção que corroeu partes do PT, Lula foi de longe o melhor presidente que o Brasil já teve. Com todos os erros, de algum modo também por causa deles, ele é, como nenhum outro político, o Brasil.
3. Não sei que responsabilidade, se alguma, Lula tem no processo ao qual os ministros do Supremo Tribunal Federal recusaram habeas corpus, abrindo caminho a que o juiz decretasse a prisão. Não sei, ninguém sabe, porque faltam provas. E esse é o problema do processo, a sua evidente contaminação política, a sua cara de punição anti-pêtista, de bloqueio a que Lula volte a correr para presidente, favorito como é neste momento, quando todos os outros políticos não-pêtistas, com cascatas de acusações e indícios, continuam soltos da vida, nos três poderes do Estado.
Então, o processo de Lula não é problemático porque lhe toca, claro, mas porque se arquitectou aos olhos de milhões de pessoas como parte de uma engrenagem, etapa de um golpe progressivo. A vingança de uma elite desdenhosa, ao fim dos anos em que dezenas de milhões saíram da pobreza, e apareceram nos aviões, nas universidades, até no estrangeiro. Os pobres! Os negros! No estrangeiro! No país dessa elite, uns continuam a nascer para servir, outros para serem servidos porque é a lei natural das coisas, e o topo existe para se perpetuar. É o país que sempre mandou, e sempre mandou matar, a triunfar sobre o país que sempre sambou sobre os cacos. Mais uma mostra de como piolhos ferem leões que já estão na história há muito, por tudo o que já deram, como Luís Inácio Lula da Silva.
4. O país que estes ministros e juízes de facto não conhecem, de que estão totalmente alienados, é o de Marielle, das favelas da Maré, de quem vê chegar o caveirão do BOPE, de quem pode ter a bota da Polícia Militar na cara, e tem probabilidade de morrer só por ser jovem e negro. É o país dos migrantes como Lula, dos que dormem na janela do ônibus, no trem quebrado da periferia, das horas gastas só para chegar no trabalho, de quem morre de estupro e de aborto, dos que estão na rota da bala, dos que cantam na roda, dos que pulam carnaval como se não houvesse amanhã, dos que fazem sair o sol só de pisar na areia, dos joões, dos caetanos, dos chicos mas também das linns da quebrada, que são o que querem, transgénero, sem género, e tomaram a palavra também porque houve um Lula que se tornou presidente, um Brasil que saiu da sombra. Todos esses que têm tantos mortos para chorar, e tanto cantam para ficarem vivos.
5. Entretanto, o país que aplaude o oco destes ministros, destes juízes, está cheio de (ou anseia por) alarmes, câmaras, grades, garagens de onde saem bólides de vidro escuro, onde entram bólides de vidro escuro que dão acesso a condomínios cheios de empregados. É o país que suspira por viagens ao exterior do tempo em que esses empregados nem sonhavam andar de avião. O país que acha normal contratar segurança privada porque não tem outro jeito, porque tem muito bandido, porque bandido não tem mercê, porque a vida é uma selva, milícia faz parte, o bolo não dá para todos.
E, claro, esse país conta com o interminável mundo de gente que só tenta sobreviver. Carne para canhão das elites no poder, e carne para canhão das igrejas que querem o poder. Um país imenso a ser roubado por todos desde sempre, e pela própria dor, explorada por quem se aproveita do descaso do Estado, igrejas do dízimo tantas vezes aliadas do tráfico. A dor não acaba, sobretudo para quem é pobre, então vêm esses neo-pentecostais e roubam o corpão à mostra, a roupa da baiana, o acarajé, invadem terreiro de candomblé, acabam com culto de negro, templo do diabo. Todo um Brasil roubado por aqueles a quem a tristeza interessa, para quem a tristeza compensa, porque só a tristeza dará poder.
6. Nunca foi tão difícil amar o Brasil, nunca foi tão preciso amar o Brasil. Vejo os amigos dizendo: saudades do meu país. Somos imensos, todos com saudades. Esta história não acabou, o luto vira luta, canção. Tal como tristeza não tem fim mas tem, quando alguém a canta. Aí, chama alegria, junta gente. Se ninguém sabe o que será uma revolução, amar uma ideia de país já é revolução, e esse país existe, que eu vi. Estou vendo, a horas do tal prazo para Lula se entregar à cadeia. Mandando o alecrim aqui do quintal, enquanto não vou eu mesma.
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