Ao saber da morte de Manuel Reis, no domingo às seis da tarde, a minha mulher, Cristina, perguntou-me como eu o definiria. Conheço tão bem o “Manel” que senti uma enorme dificuldade em responder-lhe...
Lembrei-me então da única entrevista que ele deu, no final de 1998, para a revista “Tango Lisboa” (um importação de Hamburgo que teve vida efémera). O Manel detestava dar nas vistas; queria que toda a gente visse as suas propostas e as pessoas que ele inventava ou apoiava, mas era tímido com a sua persona. Para o convencer a dar a entrevista, tive de propor que fosse a jornalista Maria João Guardão a escrever e a fotógrafa Inês Gonçalves a fazer as imagens. Na abertura, Maria João dá a minha resposta à pergunta de Cristina:
“Manuel Reis é, simultaneamente, um ídolo para as pessoas que apreciam e conhecem a modernidade, e um desconhecido para o grande público que, sem o saber, tem recebido a sua influência poderosa e discreta. Enumerar o que criou, a noite de Lisboa e o Bairro Alto, assim como tudo o que influenciou na moda, na arte e na cultura de Lisboa, seria demasiado extenso. É, de certo modo, redutor do seu talento, sempre levado ao mundo através de outros.”
Logo que se soube que o Manel tinha morrido, a comunicação social encheu-se de obituários - “o rei da noite”, “o homem que inventou a noite”. A única justificação para esta redução dum guru da modernidade a empresário nocturno será talvez o resultado da juventude das redacções. Não foi como noctívago profissional que começou, e a “noite” para ele foi apenas o suporte exuberante de uma actividade que se estendeu praticamente a todos os aspectos da cultura de Lisboa. Talvez por ser discreto, a maior parte dessa actividade foi criada através das pessoas que ele descobria, impulsionava, aconselhava. Pessoas essas que, individual e colectivamente, fizeram o renascimento da cidade apagada e formal, ainda fechada nos constrangimentos do ancien regime, num vórtex de criação contemporânea.
Foi Almada Negreiros que disse: “Uma época não é apenas uma questão de tempo mas essencialmente um sentido do novo no eterno.”
O sentido do novo. Aconteceu em várias cidades e várias épocas: Viena e Paris no final do século XIX, Berlim nos anos 1920, Nova Iorque na década de 1950, Londres na de 1960. São períodos em que tudo se concentra para que os criadores possam criar e surjam novas modas, novas ideias, novos paradigmas. Para que isso aconteça são precisas dois pontos de apoio: liberdade e dinheiro. Liberdade para permitir a mudança, as experiências sem censura; dinheiro não para os que já o possuem, mas para aqueles, jovens idealistas, que de repente têm a possibilidade de viver do espanto dos demais.
Foi isso que aconteceu com Lisboa entre as décadas de 70 e 90. A Revolução abriu a liberdade. A entrada na União Europeia trouxe o dinheiro. E quem percebeu essa possibilidade e a materializou foi o Manuel Reis, “um flautista encantador da noite, da música, da moda e da arte” (segundo a minha amiga Carmo Risques).
o Manel era muito mais do que o Frágil, e que o Frágil era muito mais do que um bar de copos e namoros
Conheci o Manel nos anos 80, não me lembro da data certa. Eu morava então em Nova Iorque e o Bernardo Futscher Pereira, que na altura estudava na Columbia University e mais tarde seguiu a careira diplomática (foi ele que trouxe o Web Summit para Lisboa), levou-o a minha casa, na Rua 14. O Bernardo já me tinha falado do Frágil e foi com espanto que percebi que o Manel era muito mais do que o Frágil, e que o Frágil era muito mais do que um bar de copos e namoros.
Logo em 1974 o Manel abriu uma loja de coisas (roupas e móveis) na Rua da Atalaia. Pouco depois incentivou dois amigos, o Fernando Fernandes e o Zé Miranda, a abrir o restaurante ali mesmo em frente, o Pap’Açorda, que ele decorou num estilo que me fez lembrar o Odeon de Nova Iorque. E em 1982 abriu o Frágil nas instalações de uma antiga padaria, também na Atalaia.
À medida que ia ganhando dinheiro, investia-o nas suas ideias. Para a Loja da Atalaia (que existe até hoje, no Cais da Pedra) foi buscar uma figura muito especial, a Margarida Subtil, gerente e rosto da casa, quase sempre vestida pela Manuela Gonçalves, uma das designers de moda que ele também descobriu. E começou a comprar móveis no estrangeiro ou perdidos e ignorados em Lisboa – no mesmo estilo “diferente” que remetia para o restaurante e para outras decorações que entretanto lhe surgiam.
Vale falar um pouco do Frágil, que só conheci pessoalmente em 1992, quando voltei para Lisboa. As “boites” da cidade eram uma repescagem do estilo do antigamente, isto é, muitos dourados, veludos e rococós a imitar riqueza, frequentadas por tias e betos também do antigamente, que viviam a noite como uma oportunidade de cavaqueira macho-fadista, num fundo de música “disco” para irem para a pista de dança sacudirem o pó dos Chanel e dos Ralph Lauren. Os jovens e todas as pessoas que não se reviam nesse saudosismo constrangedor e nos estilos clássicos não tinham para onde ir e – segundo me disseram, porque não estava cá – vagueavam por casas nocturnas escavacadas ou decadentes, para mostrar o seu enfado com a vida.
O Frágil trouxe a “boite” para outro paradigma – o tal “sentido do novo” de que fala Almada Negreiros. Era o substituto contemporâneo do café do século XIX onde os intelectuais ficavam tardes a congeminar como mudar a Terra e a terrinha: “Portugal é um país traduzido do francês em calão”, lá dizia o Eça, enfadado. Mas o Eça ainda é grande hoje, 150 anos depois, porque foi moderno nos 1880s. O Frágil não era um sítio de copos e engates (embora ambos abundassem); o Frágil era onde se ia trocar impressões, propor ideias, ouvir propostas e inventar projectos. A música, escolhida pelo mais sabedor e clássico dos DJs, Leonaldo (Nanau) de Almeida, era o anti-disco, a volta ao rock que explodia em todo o mundo civilizado. De repente, podia-se ouvir em Lisboa o que se ouvia em Londres, vestir o que de mais exuberante apetecesse e trocar impressões sobre o que estava a acontecer.
Frequentavam o Frágil pessoas de todas as artes que nunca pensariam em ir à noite a outro sítio. O Manel, sempre discreto mais muito presente, terá incentivado e dado ideias a muitos deles – esses sim, as pessoas cujos nomes toda a gente conhece. Seria impossível enumerá-las todas, mas aqui vão alguns nomes, apenas os que me vêm à cabeça sem consultas (e peço desculpa de não me lembrar de todos):
Músicos: António Variações, Pedro Ayres Magalhães, Adolfo Luxúria Canibal, Zé Pedro, João Peste, Rui Reininho, Rui Pregal da Cunha, Sérgio Godinho.
Actores: todos, desde Alexandra Lencastre a João Perry – para este, o Manuel criou um espectáculo espantoso para a ópera “Horácios e Curiácios”, em 1989. Manuel Vieira, Lia Gama, Ana Padrão...
Artistas plásticos: Pedro Cabrita Reis, Julião Sarmento, Rui Sanches. Aqui vale contar uma história pouco conhecida: a Joana Vasconcelos era segurança do Lux – o Manel, quando abriu no Cais da Pedra, teve a ideia de ter seguranças femininas. Um dia ela apresentou-lhe a primeira peça, a famosa “Sempre Noiva”, que ele pendurou na escada da entrada. Depois expôs outra peça icónica, “Coração independente” na Loja da Atalaia. O resto é História...
Realizadores: Seixas Santos, João Botelho, Joaquim Leitão, Edgar Pêra.
Jornalistas: Vicente Jorge Silva, Clara Ferreira Alves, Miguel Esteves Cardoso, Alexandre Melo, Eduardo Prado Coelho, Nuno Roby Amorim, Augusto Seabra, Catarina Portas (que depois deixaria o jornalismo para fazer a Vida Portuguesa, segundo ela, só possível com a ajuda do Manel.)
Arquitectos: Margarida Grácio Nunes e Fernando Sanchez Salvador, Alberto Caetano, Manuel Graça Dias. (Os primeiros viriam a ser os arquitectos do Lux.)
Designers: Manuela Gonçalves, Felipe Faísca, Ana Salazar, Mário Matos Ribeiro, Dino Alves, Eduarda Abondanza – aliás o Manuel viria a congeminar a primeira Moda Lisboa, no São Luís, em 1992.
A Loja da Atalaia, que tinha um espaço maior e mais aberto, serviu para muitas exposições, algumas de encomenda. Ficou famosa uma de 40 peças mobiliário desenhadas por várias pessoas, arquitectos, artistas plásticos e não sei mais de que profissão. Lembro-me de alguns nomes: Francisco Rocha, Felipe Alarcão, Pedro Silva Dias, Margarida Grácio Nunes, Sotto Moura, Leonaldo Almeida.
(Nesse ano, recém-chegado a Lisboa, tive o espanto de assistir a uma festa antológica, em Braço de Prata, comemorativa dos dez anos do Frágil. A fábrica abandonada e degradada transformou-se numa catedral do estilo eclético do nosso tempo, apenas com luz e som. Pela mão do Manel, claro.)
Políticos: não quero citar nomes, (está bem, cito dois: Manuel Maria Carrilho, que ainda não era nem político nem agressor, e Miguel Portas, que estava a preparar a Ovelha Negra). Certamente que passaram por lá, imberbes, muitos que agora representam a opinião sempre contemporânea de Eça de Queiroz: “Os políticos e as fraldas devem ser mudados frequentemente, pela mesma razão.” Aliás, vem a propósito dizer que o Manuel Reis sempre foi simpatizante do PS. Era de esquerda, o que desfaz o preconceito de que a preocupação com estilo e cosmopolitismo é uma característica da direita.
Estes, e outros que infelizmente não me lembro, eram os que entravam. E os que não conseguiam passar da porta? Uma amiga que viveu esses tempos contou-me o que era passar a franquia da zona dos comuns para o espaço lá dentro - o que também significava passar a figura da porteira antipática. E como, ao entrar se sentia a validação de fazer parte do clube exclusivo da elite cultural.
Muitas outras pessoas odiavam o conceito e achavam uma forma de elitismo pretensioso. Mas havia o problema real do pouco espaço do Frágil – calculo que não tinha espaço para mais de cem pessoas. E o critério era sobretudo estilo – não um estilo em particular, mas um estilo diferente, pessoal, original. Uma atitude. Coisas difíceis de definir, sobretudo para quem não as tem.
O Frágil era intimista, o Lux majestático
Adiante. Estabelecido em Lisboa, passei a mergulhar quase diariamente naquele lago de surpresas e ideias que era o Frágil. Foi lá que conheci quase todas as pessoas interessantes que conheço. E o interesse tanto podia estar na beleza como nas opiniões.
Como passei depois, eu e os do costume, para o Lux, em 1998. Ao princípio havia umas tardes de domingo em que se bebia suavemente e se apreciava a paisagem do rio. Sem as restrições etárias de um estabelecimento nocturno. A minha filha Violeta era levada de cestinha!
Porquê o Lux? Porque o Frágil já era pequeno para as ideias sempre mais espampanantes do Manel. Pois, convém não esquecer que a casinha da Rua da Atalaia era apenas uma base; era lá que o Manuel Reis descobria as pessoas com quem inventou espectáculos, fez exposições, decorou conceitos, enfim, alargou-se por todas as áreas onde encontrava pessoas que seguiam a sua visão. O Lux era outro projecto; aproveitar o espaço maior e as possibilidades técnicas para espectáculos com convidados especiais e DJs com mais público. Lembro-me de Prince, Herbert, 2 Many DJs, LCD Soundsystem, Animal Collective, The Kills, Antony e ainda estrelas com Dita Von Teese, actrizes porno e toda uma variedade de artistas. O Frágil era intimista, o Lux majestático.
E as festas? Houve as comemorativas dos aniversários da casa, e as temáticas. Por vezes o Manel aumentava o espaço com tendas enormes e não descurava as surpresas, desde vídeos experimentais a performances, passando pelos figurinos dos empregados e de convidados especiais, vestidos como num filme de Almodôvar. Milhares de pessoas, aí num número mais alargado de tribos da cidade, numa alegre confusão e muita alegria. Era a “noite”, mas era também uma manifestação de cosmopolitismo e diversidade.
E a música estava sempre a mudar. Muitos DJs se fizeram por lá, como Rui Vargas, Pedro Fradique e Yen Sung.
Mas como era o Manuel Reis como pessoa? Tímido, discreto, sem no entanto evitar as pessoas que o abordavam, sempre pronto a ouvir. Muito privado; contam-se pelos dedos quem entrou em sua casa, um andar enorme a São Mamede, num prédio com vista para o vale de São Bento. Um homem sozinho, até mesmo solitário, no meio dum rodopio constante, fechava-se naquele espaço novecentista decorado com peças superlativas que trazia da loja, e onde só ia para dormir. Trabalhava desde que acordava até altas horas da manhã. Era um homem do dia, não da noite. Com o tempo e as exigências, acabou por dirigir uma equipa de “miúdos”, preparados para continuar as experiências do Lux – experiências essas que, na minha opinião, não poderão continuar. O Manel tinha uma visão, uma escolha, que morre naturalmente com ele.
O velório foi esta terça-feira, no Teatro Thalia, um espaço despojado e impressionante, escolhido pelo falecido, que ainda indicou como a iluminação devia incidir sobre as paredes de pedra rusticada e não sobre o féretro. Sempre controlador da sua visão estética, até depois da vida.
Centenas de pessoas, nas poucas horas que aguentei emocionalmente lá ficar. Doutros tempos, umas já morreram, outras estão a romper pelas costuras, outras ainda com muito bom aspecto. Seguiram os seus caminhos, mudaram de profissão e de estado civil, desencontraram-se – mas não esquecem o momento da vida em que se cruzaram com o flautista que lhe mudou as vidas. Dos tempos de agora, mais jovens, a nova geração que o encantador já estava a preparar – gostava de se rodear de gente nova, com ideias e sangue na guelra. Juntos, pareciam uma família compungida com a morte do patriarca. Todos tinham histórias de como ele era atento a tudo, ouvia o que tinham para dizer, apreciava as pessoas, fossem novas ou velhas, simples ou eruditas. Conversei com quem já não via há vinte anos, como se tivesse visto ontem. Muitas lágrimas, mas também muitas gargalhadas. Quem fez a revolução política foram os militares, mas quem fez a revolução cultural foi ele, ouvia-se.
Uma opinião unânime: acabou uma época.
Que época? Pois bem, no período de 1980-2018 os nativos deram largas à sua criatividade e fizeram uma cidade nova, vibrante, cosmopolita. Agora, começa outra fase, a da cidade internacional. Criadores de todo o mundo vêm para cá mostrar o que valem. É outra modernidade. O futuro começa agora, mas primeiro houve o futuro com a marca inapagável do Manuel Reis.
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