O monólogo inicial - com o apresentador sozinho, de pé, a discorrer sobre assuntos da actualidade – é um dos momentos mais nobres dos talk shows americanos (e uma dos momentos mais embaraçosos dos talk shows portugueses). Boa parte da minha defesa de Conan O’Brien residia na abordagem meio displicente e sabotadora com que ele fazia esses monólogos cómicos: pegava no texto escrito pelos seus argumentistas e, com brilhantismo, acentuava os sucessos e (sobretudo) os insucessos das piadas. Fisicalidade excessiva, tropeções, desespero e falso amadorismo – com isto O’Brien conferia personalidade e autoria própria aos monólogos escritos pelo seu staff. Era um despojamento que não residia apenas na tão estafada auto-comiseração, antes numa auto-caricaturalidade que humanizava a prestação, e aproximava a comédia (e o cómico) das pessoas. Quase nos fazia torcer que falhasse, pois era aí que mais vitorioso se tornava. Com Kimmel, na passada segunda-feira, não foi nada disso, foi muito melhor: o texto era só dele, mas tornou-se crucial que fosse de nós todos; despojou-se, aproximou-se, humanizou-se; ninguém torceu para que ele falhasse; saímos vitoriosos.
“Tenho uma história para vos contar sobre aquilo que aconteceu à minha família na semana passada” – foi assim que Jimmy Kimmel começou o monólogo da emissão do seu programa no dia 1 de Maio. Em 13 minutos de voz embargada, por entre lágrimas derramadas e muitas granjeadas, ao som de palmas e risos, Kimmel relatou o nascimento do seu último filho, o problema de coração imediatamente detectado ao bebé, a angústia, o apoio, as preces, a vitória e a gratidão no desfecho. São 13 minutos que, não podendo eu transcrever, me fazem desejar que todos entendam inglês (pois disponibilizo o vídeo para ouvirem no original). 13 minutos que são históricos - não por revelarem grandes movimentações globais no percurso da Humanidade, mas porque nos humanizam através dum homem só.
A meu ver, Jimmy Kimmel já tinha estado muito bem este ano a apresentar os Óscares: certeiro no texto, excelente no improviso e corajoso no imprevisto. É, contudo, desde segunda-feira que 2017 fica justamente entregue ao humorista. Não o digo pela compaixão que o relato me provocou, mas antes por aquilo que motivou a abertura de coração de Kimmel (sobre a literal abertura de coração do seu filho). Mais do que uma história comovente, e até mais do que uma demonstração de gratidão, o apresentador fez o melhor discurso político do ano, exactamente porque quis fazer o menos político discurso do ano. Com frases como “Nenhum pai devia ter de decidir se tem ou não dinheiro para salvar a vida do filho”, ou “Se o vosso bebé vai morrer, e não tem de acontecer, não devia interessar quanto dinheiro é que têm. Isto já é alguma coisa; quer vocês sejam Republicanos ou Democratas ou outra coisa qualquer, nisto estamos de acordo, certo?”, ou ainda “vamos parar com este disparate. Isto não é futebol. Não há equipas. Nós todos somos a equipa. Somos os Estados Unidos da América. Não deixem que as disputas partidárias deles nos dividam numa coisa que qualquer pessoa decente deseja. Precisamos de cuidar uns dos outros”, Kimmel fez a melhor das defesas para o melhor dos legados da presidência de Barack Obama: o Obamacare.
Existiram frases mais específicas e detalhadas sobre o Affordable Care Act
(vulgo “ACA” ou “Obamacare”) no monólogo do humorista, mas o proveito das que citei é muito particular. Noutro contexto, podíamos bem ignorá-las pela pieguice ou pelo fedor a lugar-comum. É a circunstância de Jimmy Kimmel que muda tudo de figura: primeiro, pelas motivações – há sinceridade patente na comoção de Kimmel, e percebemos que não existe motivação política. Existe é uma lição aprendida e partilhada. Kimmel já era defensor do ACA, mas largou o cunho ideológico e entendeu que certas racionalidades exigem coração. Segundo, pelo altruísmo – o apresentador é uma celebridade milionária com posses para pagar os cuidados médicos que quiser; não foi por necessidade que Kimmel partiu a defender o Obamacare. Não se trata tampouco do remorso dum privilegiado: é puro altruísmo dum pai rodeado de outros pais numa sala de espera de hospital. Eram pessoas de todas as classes sociais que lá estavam, e isso não lhe accionou complexos, accionou-lhe o que está certo: desejar aos filhos dos outros a mesma esperança, o mesmo sucesso, e o mesmo alcance a cuidados de saúde que deseja para o seu próprio filho. Estamos perante um homem que não se limita à celebração, mesmo estando vitorioso. De lágrimas nos olhos, alerta para um país que até agora condenava muitos à derrota.
Já tínhamos ouvido relatos comoventes sobre a necessidade do Obamacare, mas normalmente contados na experiência própria de quem dele tinha usufruído. Muitas dessas narrativas tornavam-se alvo duma instrumentalização ideológica, e davam azo a acusações de demagogia e populismo. Depois disso, quase somos forçados a crer que o lado do esclarecimento político é o lado do descoroçoamento - é uma ideia que conheço há mais de dez anos, desde o tempo dos blogues. Germinou-se uma escola de opinião política que passa, sobretudo, pela sobranceria na abordagem, um bullying semi-humorístico das fragilidades do adversário. Mais do que defender os méritos duma ideia, há que escolher os alvos fáceis na ideia contrária para a ridicularizar. É uma escola ainda hoje vigente em comentadores, e que muito nos fez rir e acenar em direcção ao Jon Stewart. Mais implacável que justo, mais piadético que piedoso, nunca sentimental.
Já por estes lados escrevi (no contexto da Alt-Right) como a sobranceria intelectualóide duma facção alimenta o extremismo revoltoso da outra. Em ambos os lados perde-se o coração. Não quero fazer alusão às revoluções açucaradas bergoglianas, que apelam mais ao palato que ao peito; também não estou na senda guterrista da “Razão e Coração”, que era mais soundbite que batimento cardíaco. O que quero é falar de Jimmy Kimmel, alguém que tem habitual discurso mordaz a torná-lo insuspeito, mas que anteontem, nas lágrimas, nos arrancou a suspeição de que está certo. E que maior racionalidade há do que esta, de não estarmos errados?
Kimmel também vem da escola dos sobranceiros, dos bullies ideológicos. Faz inúmeras vezes, e com mestria, a exploração das fragilidades dos outros para nos arrancar gargalhadas. Mais esclarecedor e esclarecido por isso se torna o monólogo de segunda-feira - aquele discurso emocionado jamais será confundido com pieguices, clichés ou faltas de tino. As lágrimas não lhe toldaram a vista, lavaram-lhe os olhos; emprestou-as para que lavássemos os nossos – sem a sobranceria dos donos da razão, que são só dolos da razão. Jimmy é o maior pela maneira como usa a celebridade para se despir da celebridade, é o maior por se colocar no papel do outro na exacta circunstância em que não precisava, é o maior por querer instar bondade e esperança quando já tinha ambas por adquiridas. É o maior também por nos fazer considerar isto: em tempo de tanta forçosa correcção política, em que o comprazimento ideológico passa por catecismos altivos, em que a lógica se grava em monólitos que são pedras de arremesso, o que é que será realmente demagogo? O coração ou o calhau?
SÍTIOS CERTOS, LUGARES CERTOS E O RESTO
Sobre o Obamacare, dois links dum mesmo site, sem facciosismos e perfeitamente equilibrados (não se chamasse esse site “The Balance”).
https://www.thebalance.com/obamacare-explained-3306058
https://www.thebalance.com/obamacare-pros-and-cons-3306059
Sobre Kimmel, a recordação de que nem sempre quis tratar bem os filhos da nação.
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