Os militares têm submetido os 55 milhões de habitantes a um regime autoritário e repressivo em 50 dos últimos 60 anos, decidiram em 1989 que, para o direito internacional, aquele país é a República da União de Myanmar, ou seja, Mianmar. Para os que crescemos a ler as façanhas de heróis criados por Emilio Salgari, continua a ser a Birmânia. Esta identidade lendária é tão evocativa como alguns lugares dali como o Golfo de Bengala, Rangum (hoje Yangon) ou Mandalay, cidade e também nome de um famoso poema de Rudyard Kipling que nos transporta para aquele exotismo.
Esses relatos antigos retrocedem-nos a lugares de sonho com fértil beleza natural e floresta profunda com templos assombrosos.
Mas a realidade da vida nas últimas seis décadas neste país, onde a Junta Militar é também implacável a favorecer a religião budista, é um inferno.
A tormenta começou há 60 anos. Em 2 de março de 1962, o general Ne Win, chefe do estado maior das forças armadas da Birmânia (Tatmadaw) tomou o poder governado por civis durante os 14 anos decorridos da independência. Então a comunidade internacional, encabeçada pelas duas potências daquele tempo, EUA e URSS, deixou correr. A tomada do poder pelos militares estava a ser prática nos países asiáticos que se se tinham libertado da colonização do império britânico.
Tinha acontecido o golpe do marechal Sarit Thanarat, em setembro de 57 na Tailândia; o do general Ayub Khan, um ano depois, no Paquistão; em maio de 61, a junta de Park Chun-hee tomou o poder na Coreia do Sul.
Poucos países asiáticos saídos da colonização britânica resistiram à tentação pretoriana. O mais grave na Birmânia/Mianmar é que a repressiva junta militar, com sucessivos chefes, está no poder há 60 anos, embora com uma ténue abertura que insuflou alguma esperança democrática entre 2011 e 2021.
Em Agosto de 1988 levantou-se na Birmânia um robusto movimento popular pró-democracia e contra a junta militar então há 26 anos no poder. A liderança desse movimento foi assumida por Aung San Suu Kyi, que a partir dali se tornou símbolo da democracia.
Mas em resposta a esse levantamento democrático, logo no mês seguinte outros militares tomaram o comando da junta, criaram o Conselho de Estado para a Restauração da Lei e da Ordem. Foi uma espécie de golpe dentro do golpe e a repressão foi sangrenta. Milhares de civis foram mortos – estão reportados seguramente mais de 3000, há quem refira 10.000 – e muitos milhares de detidos, alguns torturados.
Entre as pessoas presas, Aung San Suu Kyi, cabeça da revolta democrática. Condenaram-na a 15 anos de cadeia. Então os governos ocidentais e o Japão reagiram em protesto e cortaram as ajudas ao país. Mas o regime contou com o apoio da vizinha China.
A indignação internacional pelo reforçado golpe militar e pelo corajoso combate de Aung San Suu Kyi levou o Comité Nobel em Oslo atribui-lhe o Prémio Nobel da Paz, que ela não pôde receber por estar encarcerada.
A popularidade de Aung San Suu Kyi tornou-se imparável no país e no exterior. Os militares sentiram-se na necessidade de converterem os 15 anos de cadeia com que foi sentenciada em prisão domiciliária.
Em 2010, a junta militar organizou umas eleições amanhadas e proclamou-se vencedora. Mandou libertar Aung San Suu Kyi, então celebrizada como “The Lady”.
No ano seguinte começou um raro processo de transição democrática parcial.
Os militares perceberam que tinham de tolerar uma liderança civil, necessariamente a da “Lady”, para dar algum verniz democrático ao sistema e permitir que fossem levantadas as sanções internacionais que asfixiavam o regime.
Consentiram que Suu Kyi em 2012 fosse eleita deputada e que em 2015 ganhasse as eleições.
Mas os chefes militares mantiveram o controlo na sombra dos imensos e opacos conglomerados que agregam riquezas do país, designadamente o setor extrativo e as matérias primas.
A junta também montou uma revisão constitucional que lhe garante privilégios: garante-lhe automaticamente 25% dos lugares no parlamento; dá-lhe, pelo menos, três dos ministérios mais influentes – Interior, Defesa e Fronteiras — e direito de veto sobre decisões do governo. Também impediu Aung San Suu Kyi de aceder à presidência do país ao impedir o acesso ao cargo a quem tenha filhos estrangeiros: a “Lady” tem dois, do casamento com o falecido académico britânico Michael Aris.
Mas Suu Kyi aceitou o mal menor, jogou o jogo político dos militares. Vencedora das eleições de 2015, aderiu à coabitação entre um governo civil e os militares. Nunca foi uma coligação, foi um entendimento entre partes desavindas, sob fachada de relativa harmonia.
A “Lady” expôs-se então a grande desgaste internacional com a perseguição aos rohingyas muçulmanos que lhe destroçou muito do prestígio e respeitabilidade conquistadas.
A repressão contra os rohingyas forçou 730 mil pessoas desta minoria muçulmana a fugir, em 2017, para campos de refugiados no Bangladesh. O êxodo e o drama nunca mais parou. A prémio Nobel alinha com o pensamento da etnia bamar, a principal do país e de religião budista, que rejeita a presença dos rohingyas muçulmanos. Aung San Suu Kyi dispôs-se a viajar a Haia para, perante o Tribunal Internacional de Justiça, negar pessoalmente as acusações de genocídio.
O Ocidente ficou consternado ou revoltado. Em Mianmar, ela ficou mais popular que nunca. Triunfou incontestavelmente nas eleições de 8 de novembro de 2020 com 82% dos votos.
Os militares sentiram-se humilhados. Vingaram-se: adotaram atitude à Donald Trump (declararam que houve fraude eleitoral) e levaram a melhor. Faziam parte de todo o aparelho de poder, governo incluído, tomaram o poder absoluto.
Em 1 de Fevereiro do ano passado interromperam a década de discreta transição democrática e entraram na dramática repetição dos golpes de estado de 62 e de 88: meteram na prisão Aung San Suu Kyi e vários dos ministros que ela tinha escolhido. Arranjaram como pretexto a fraude eleitoral e a corrupção – sem provas. A tropa abateu milhares de pessoas e prendeu muitos outros milhares.
Mas muito povo continuou a resistir. A junta militar começou por bloquear o acesso à internet para tentar silenciar os protestos. Não conseguiu. Mandou a seguir avançar tanques com ordem para disparar sobre manifestantes.
A situação dos rohingyas que ainda restavam no país tornou-se mais desesperada: sempre perseguidos, apesar de recusarem o fundamentalismo islâmico e de não terem qualquer ideologia de poder.
Quando passam 16 meses sobre o golpe militar que está em vigor, a resistência democrática não se cala. E a repressão também não cede, antes cresce e atinge agora uma comunidade luso-descendente com umas 100 mil pessoas que praticam a religião católica. É gente que não fala português – não há escolas onde se ensine o português – mas têm na fisionomia traços distintivos da origem portuguesa.
Essa comunidade luso-descendente tem identidade: são os bayingyi. É gente descendente de combatentes portugueses que entre os séculos XVI e XVII estiveram ao serviço de monarcas birmaneses como artilheiros e soldados.
Quando foi dispensada a participação militar deles no exército real da Birmânia, a comunidade dos bayingyi ficou agrupada numa área geográfica específica da Birmânia, no vale do Rio Mu, onde lhe foi concedido manter a fé católica e viver de acordo com as tradições. Isto, até há seis meses, quando o cerco dos militares começou a apertar-se e a tornar-se brutal.
A situação crítica foi desencadeada quando foi relatado que essa comunidade luso-descendente se tinha associado a movimentos de protesto contra o regime da junta militar. É a mecha para que nos últimos meses se sucedam ataques militares de repressão sobre esta comunidade.
A comunidade bayingyi está distribuída por 13 aldeias. Fontes da comunidade bayingyi relatam-nos que sofreram um primeiro ataque em vésperas do último Natal.
Foi a 21 de Dezembro. A aldeia de Chaung Yoe foi assaltada nesse dia por um pelotão de soldados, que saqueou todas as casas da aldeia. Não houve resistência dos bayingyis porque perceberam que o recurso que tinham era o de fugir.
Seguiram-se mais três ataques. O primeiro a 25 de Fevereiro, então com os militares a dispararem artilharia pesada sobre aquela aldeia principal da comunidade, onde residiam umas 250 famílias. Ficou tudo em escombros, os habitantes, uma vez mais, puseram-se em fuga à aproximação dos militares.
A 28 de Março, novos ataques, agora por elementos à civil, fortemente armados, que tiveram como alvo principal o complexo da Igreja. Dispararam sobre a casa do clero e raptaram três dos religiosos. O grupo atacante incendiou 17 casas, a capela e o santuário da aldeia.
Há duas semanas, a 20 de Maio, aconteceu o ataque mais brutal: os soldados voltaram a Chaung Yoe, munidos de artilharia. Ao todo, mais de 300 casas foram destruídas pelos canhões. Neste momento, apenas 20 casas permanecem intactas em toda a aldeia. Há relato de outros assaltos a outras aldeias.
As perseguições não param. A catedral católica de Mandalay onde o arcebispo tem acolhido os perseguidos, foi assaltada e ocupada nos dias da Páscoa por tropas às ordens da junta militar.
Os católicos são uma minoria, cerca de 1,5% da população de Mianmar que tem 8% de cristãos.
Passaram a estar no alvo da repressão nesta desgraçada nação onde a geografia tem papel fundamental: Mianmar forma uma interceção onde se cruzam as ambições estratégicas da China e da Índia. O território do país proporciona à China uma saída com acesso ao sistema de comunicações navais do Indo-Pacífico. É uma explicação para a simpatia de Pequim pelos ditadores de Mianmar. A Índia está interessada nas importantes reservas de gás do país que é a antiga Birmânia.
Os EUA dão sinais de desejar a instalação de um regime civilizado em Mianmar como forma de fazer frente à crescente influência regional da China.
Dentro do país segue, com episódios de grande brutalidade, o confronto entre mobilizações populares democráticas e a repressão militar. Tem sido assim em 50 dos últimos 60 anos e o futuro das pessoas e do país não deixa de sobressaltar.
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