1. Há um ano, no 25 de Abril, eu estava em Bissau. Fui a convite de uma cooperativa guineense para fazer uma oficina de escrita e falar de um livro. Outras coisas acabaram por surgir, mas a origem da estadia é essa. A data não era um acaso, foi mesmo o eixo. Antes de mais, o tema da oficina, que dividi no antes, durante e depois: tempo colonial, revolução, pós-independência. Sobre isso falaram e escreveram os participantes guineenses, com idades entre 18 e acima de 40. Como a ideia era ainda ter tempo de ler alto e debater o que ia ser escrito, focámo-nos em formatos curtos: crónica, micro-conto, poema. Então, durante três dias, na biblioteca do Centro Cultural Português onde a oficina acontecia (organizada pela cooperativa Corubal, apoiada pelo Instituto Camões), emergiram histórias, lutos, sonhos de avôs e avós, de pais e mães, de infância. Memórias do que foi viver sob o domínio colonial e no pós-independência. Da luta de libertação, tão decisiva na Guiné. Do que tanto se ansiou, do que está por fazer.
Eu nunca vira assim, através destes prismas, uma revolução que era minha, como portuguesa. Nunca pisara na Guiné-Bissau, sequer. Bem mais jovem, estivera algumas vezes em Moçambique, uma vez em Cabo Verde, mas a revolução não fora o eixo. E só os anos mais recentes me permitiram pisar a Guiné com alguma perspectiva histórica, por ter pesquisado o império português para o tal livro que apresentei em Bissau. Situado no Rio de Janeiro, esse livro tem forte relação com o passado colonial, incluindo os quase seis milhões de pessoas que Portugal tirou de África e usou como escravas. Fantasmas, buracos negros, tabus dessa história estiveram, pois, presentes no lançamento em Bissau, bem como noutra sessão, inteiramente dedicada ao 25 de Abril. Ou seja, após os dias da oficina, mais memórias emergiram das plateias em Bissau para juntar prismas ao império, à revolução que lhe pôs fim. Oficinas nestes ou noutros moldes, noutros lugares, podem ser parte do tributo devido aos africanos que se libertaram, e nos libertaram, a 25 de Abril. E parte da história oral que é preciso levantar.
Voei para Bissau a ler as memórias de Salgueiro Maia, que na Guiné teve a visão de como aquela guerra era obscena, tinha de acabar. Essas memórias dão bem ideia de como a Guiné plantou o 25 de Abril nos capitães. Como a Guiné foi um cerco. Numa das sessões de Bissau, contei que viera no avião a ler esse livro, e da plateia levantou-se o homem do PAIGC que literalmente cercara Maia, o comandante Manecas dos Santos. Visitei-o depois, uma conversa a vários títulos inesquecível, abrindo para muitos caminhos. Falou-me, por exemplo, de uma guerrilheira ainda viva que até hoje lamento não ter encontrado. Tanto por falar, tanto por ouvir.
2. Um ano depois, neste 25 de Abril de 2018, vi, li, como sempre, gente em Portugal a desvalorizar a revolução porque nada se fez, ou pouco se fez, ou se fez mal. Houve o que se fez mal, e houve o que nunca se chegou a fazer, sem dúvida. Mas o que se fez mal e o que não se chegou a fazer existem para falarmos disso, como inspiração para não voltar a fazer, para continuar a fazer. Não tiram que o 25 de Abril tenha sido uma revolução extraordinária, feita por capitães portugueses que perceberam estar num beco, depois de tantos portugueses terem sido obrigados a ir para a guerra, combatido nela, visto camaradas morrerem, irem pelos ares, perderem pernas, perderem a razão. A guerra colonial/de libertação foi uma longa carnificina de 1961 a 1974 para incontáveis portugueses, verdadeiramente incontáveis, se pensarmos também nos que optaram por desertar, os que se exilaram, esconderam, estiveram presos, arriscaram algo. E incontável numa escala muito maior para os africanos, sobretudo angolanos, guineenses, cabo-verdianos e moçambicanos, pensando nos que combateram, nos que morreram, nos que perderam tudo, e em quem os protegeu, alimentou, escondeu (sem esquecer os são-tomenses, que, não tendo participado na guerra, por ela foram afectados).
Multiplicando tudo isso, são muitas centenas de milhares de pessoas, africanos que lutaram pela sua independência, e que por isso levaram os capitães portugueses a fazer a revolução.
Então, desvalorizar constantemente o 25 de Abril é um insulto não só à liberdade (sempre ameaçada, cada vez mais, embora de outras formas) que hoje vivemos, e aos portugueses que por ela deram tudo, como aos africanos que também deram tudo pela sua liberdade, e de caminho impulsionaram a nossa.
Tal como a palavra, como a imagem, a liberdade é uma responsabilidade, cabe a cada um o que fazer com ela. Pode desperdiçar-se, pode servir o ódio, pode linchar, exactamente como a palavra, como a imagem, no rastilho das caixas de comentários e das redes sociais. O que se faz do 25 de Abril, o que ainda se pode, deve fazer, é uma responsabilidade diária de todos. O 25 de Abril não acabou, de certo modo recomeça a cada dia. E olhando para o estado do mundo, para o horror diário, mais precioso fica nas nossas mãos. Que tenha acontecido como aconteceu é precioso. E, em muito, ainda não foi agradecido, e falta muito para ser conhecido, ainda. Portanto, tem muita vida para a frente, a que já aconteceu e não se conhece, e a que ainda não aconteceu.
Entre a que ainda não aconteceu, há aquele D enorme. O da Descolonização, começando pelo pensamento. Todos os dias, a cada Abril, a forma como se desvaloriza o 25 de Abril mostra como as cabeças não foram descolonizadas. E enquanto não forem continuará a ser muito difícil travar alguns debates em Portugal. Continua a ser possível falar-se em Museus dos Descobrimentos e outras pérolas, branqueando voluntariamente o que os portugueses fizeram a milhões de africanos e indígenas, continuando a ignorar as vidas, as lutas, as identidades de todas essas pessoas, desde o século XV ao 25 de Abril. E se digo voluntariamente é porque investigadores e criadores já levantaram o suficiente da violência colonial para que as pessoas tenham uma ideia, para que desviar o assunto, distorcê-lo ou enterrá-lo sejam actos voluntários, escolhas. Quem hoje, em 2018, negar que Portugal foi um dos protagonistas do genocídio indígena, da escravatura em grande escala, da violência colonial, e que isso é parte intrínseca de qualquer história da expansão, tem de estar nos manuais escolares, e de forma visível, permanente, na ex-capital do império, está voluntariamente a branquear não só o passado como o presente de milhões de pessoas vivas hoje, descendentes dessa história.
O 25 de Abril é também esse tributo.
3. A propósito, acabo de ler uma proposta para um ambicioso festival literário internacional em Lisboa feita pelos vereadores do PCP. Li primeiro a notícia, depois fui ler o texto original. Não foi mal citado. O PCP sugere mesmo os descobrimentos como um dos temas para esse festival, assim sem aspas, nem nada que problematize a palavra. Aliás, em alguns passos mais (como dizer?) conservadores, é árduo distinguir esta proposta do que seria uma do CDS. Estamos em 2018 e o Partido Comunista Português, que tantos militantes deu à luta anti-fascista, anti-colonialista, sugere os descobrimentos, sem aspas, como tema de festival, em nome de uma nova Lisboa cosmopolita de passado ilustre. Nem uma palavra sobre os descendentes desses “descobrimentos”, por exemplo os tantos afro-descendentes que hoje compõem uma parte importante do caldo que é a grande Lisboa, tal como muitos imigrantes.
Talvez tudo isto me pareça tanto mais estranho quanto mais apanho o comboio para casa, atravesso os subúrbios da Linha de Sintra de ponta a ponta, povoados por centenas de milhares de pessoas, vejo todas aquelas caras negras, ouço todos aqueles modos da língua portuguesa e todas aquelas línguas negras, que de tantas formas continuam a ser os invisíveis. Quando são parte há muito do que é a cultura da ex-capital do império, descendentes desses tais “descobrimentos” que já não é possível escrever sem aspas, sem desconstrução.
A escolha, o uso de cada palavra, como o PCP bem sabe, é tão vital na literatura como na política. A palavra desconstrói, perturba, revoluciona, tal como serve para perpetuar clichés e injustiças. Gostaria de saber se isto foi um equívoco ou se o PCP acredita mesmo em descobrimentos sem aspas como tema de festival literário.
4. Em contraponto, e para concluir abrindo portas, janelas, óptimo saber do CROME, um projeto de investigação de cinco anos (2017-2022) que fará “uma análise das memórias da guerra colonial e das lutas de libertação em Portugal Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação (ERC) e coordenado por Miguel Cardina, tendo como instituição de acolhimento o Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra”.
Daqui resultarão não só artigos académicos como uma série documental e, para já, dentro de semanas, um livro que conta dezenas de datas relacionadas com a guerra pelos pontos de vista de dezenas de autores destes países. Ou seja, poderemos ler episódios da guerra colonial/de libertação através de prismas inéditos.
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