A violência sexual contra homens não é ficção, não é fantasia, nem é tampouco um crime que acontece raramente. Entre 2017 e 2022, a Quebrar o Silêncio registou cerca de 600 pedidos de ajuda de homens e rapazes vítimas de abuso sexual. Só em 2022, foram contabilizados 127 novos casos, com uma média de 10,5 de novos pedidos por mês, havendo meses a chegar aos 18 novos pedidos de ajuda.
Por isso, a violência sexual contra homens e rapazes não é de todo ficção e este crime acontece bem mais frequentemente do que se possa crer. No entanto, sei que o público em geral pode acreditar exatamente no oposto. A verdade é que não se fala o suficiente sobre violência sexual, especialmente quando acontece contra homens e rapazes. Assim, é natural que as vítimas não sintam a segurança necessária para partilharem as suas histórias e, por isso, é cada vez mais urgente mudarmos esta realidade.
Um em cada seis homens é vítima
Sempre que refiro que um em cada seis é homens é vítima de alguma forma de violência sexual as reacções são de espanto. “Tantos homens?”, “Não pode ser, será mesmo verdade?”, “Quer dizer que há muitos mais casos do que se pensa?”, são algumas das perguntas que habitualmente me fazem. A surpresa é real e deve-se em muito à desinformação relativamente a esta forma de crime. Mas esta desinformação não é exclusiva ao público em geral, ela também afeta as próprias vítimas. Ou seja, os próprios homens e rapazes não têm consciência de que também podem ser abusados sexualmente.
Apenas 16% dos homens abusados identifica ter sido vítima de violência sexual (Widom e Morris, 1997), um número bastante baixo, e que dificulta imenso a denúncia do crime. Assim, ao consultarmos o Relatório Anual de Segurança Interna de 2021, no qual apenas 5,7% dos crimes de violação representam homens, temos de refletir e questionar o que representam estes números. Por exemplo, um estudo britânico de 2004 concluiu que só entre 3% e 8% dos homens vitimados denunciam as situações de abuso. Neste sentido, podemos considerar que os 5,7% em Portugal estão aquém do número real de crimes ocorridos e que representam a ponta de um colossal icebergue.
Abuso sexual e trauma
“Tenta que isso não te afete tanto” é uma das várias respostas que muitos homens ouvem quando arriscam partilhar a sua história de abuso. Quem profere estas palavras até pode ter boas intenções, mas não compreende que a violência sexual é uma experiência potencialmente traumática e que pode ter consequências devastadoras na vida da vítima. O evento pode ter ocorrido há anos ou mesmo há décadas, mas o impacto continua presente e a minar a forma como as vítimas lidam com o quotidiano.
Muitos homens vêem as suas vidas afetadas a nível pessoal, social e profissional. Relatam problemas em estabelecer relações de confiança com os outros, dificuldade em relaxar, estão permanentemente em alerta (vivem em estado constante de hipervigilância), têm baixa autoestima e assertividade, e vivem com níveis altos de ansiedade e problemas na sua vida íntima e sexual — só para indicar algumas das consequências. A lista pode ser longa.
A dimensão traumática tem de estar, cada vez mais, presente quando falamos de violência sexual e não ser usada apenas como um «soundbyte» que impede que se compreenda a profundidade e complexidade do seu impacto. É urgente vincular a dimensão traumática aos discursos sobre abuso sexual para que o público reconheça o quão devastador e nocivo este tipo de violência pode ser para as vítimas deste crime. Sem este conhecimento, é natural que as respostas de desvalorização continuem a proliferar e, assim, continuemos a ter vítimas silenciadas por décadas.
Mais do que números, os 594 homens que procuraram a ajuda da Quebrar o Silêncio nestes seis anos representam histórias de pessoas reais. Não haja dúvidas, estes homens fazem parte do nosso dia-a-dia. São os nossos amigos, familiares e colegas. Apesar de poderem sorrir, aparentarem estar bem-dispostos e levarem uma vida como qualquer outra pessoa, a sua realidade interna é outra. Internamente estes homens sofrem em silêncio com o trauma do abuso de que foram vítimas, fazendo um esforço hercúleo para que ninguém se aperceba. Sentem que não podem quebrar o silêncio e partilhar as suas histórias com o medo de serem recebidos com descrença, desvalorização e até troça. Por isso costumo perguntar: se o seu filho, irmão, amigo, marido, pai ou colega lhe dissesse que foi abusado sexualmente, saberia o que lhe dizer?
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