Poucas regiões do mundo abraçaram a democracia com entusiasmo como foi manifesto na América Latina à entrada neste século, após décadas de regimes autoritários e ditaduras. Mas a continuidade de altas taxas de pobreza e de desigualdade tem provocado crescente mal-estar social que saltou para a rua em 2019 com protestos sociais em vários países da região. A tensão e mesmo revolta agravou-se com a pandemia.
O relatório El estado de la democracia en las Américas 2021, do Instituto Internacional para la Democracia y la Assistencia Electoral (IDEA) mostra a erosão da democracia em vários países da América Latina. Aponta os “desvios autoritários na Venezuela, na Nicarágua, no Haiti e nas Honduras, tal como acontece há longa data em Cuba” e o “declive democrático” no Brasil desde o impeachment contra Dilma Rousseff. Este relatório coloca o Uruguai como a única democracia latino-americana com “alto desempenho”.
Os últimos tempos mostram como as origens radicais, em alguns casos extremadas, entram para as lideranças políticas na América do Sul: Castillo no Perú, Bolsonaro no Brasil.
O que agora aconteceu no Chile faz pensar: os eleitores rejeitaram os partidos que conduziram a transição democrática dos últimos 30 anos, a seguir à ditadura de Pinochet. A escolha foi feita entre Kast, um populista da direita ultra e Boric, esquerdista com questionada etiqueta de radical.
Boric, nascido em Punta Arenas lá no extremo sul, conseguiu ampliar a base de apoio no campo democrático, teve a adesão da Democracia Cristã e soma recordes: é, com 35 anos, o presidente mais jovem na história do Chile, é o presidente mais votado na história chilena (4,6 milhões, 55%) e estas foram as eleições mais participadas de sempre.
De Santiago do Chile chegam bons sinais: o derrotado Kast foi pessoalmente ao encontro com Boric logo na noite das eleições para o felicitar e oferecer-lhe “colaboração construtiva”; o vencedor, Boric, logo no primeiro discurso enfatizou a mensagem de unidade e reconciliação entre todos os chilenos, embora com anúncio de profundas mudanças.
Boric soube agregar na campanha as grandes figuras da democracia chilena como os ex-presidentes Ricardo Lagos e Michele Bachelet. Contou com a participação maciça de intelectuais e artistas.
Os primeiros estudos sobre o voto nestas eleições mostram que Boric captou de modo arrasador o voto dos eleitores com menos de 30 anos. Também teve ampla vantagem entre o eleitorado feminino e dos bairros pobres.
O novo presidente Gabriel Boric, casado com uma politóloga, tem estilo nada convencional, barba farta, tatuagens que não esconde, sempre sem gravata, é reconhecido pela ex-presidente Bachelet como “líder com forte personalidade”.
Promete como primeiras prioridades “curar o Chile da pandemia e cuidar a democracia no país”. Vai ter de responder às reivindicações da rua que ele próprio encabeçou há dois anos. É um desafio que vale como teste ao novo presidente.
Boric compromete-se a trocar o modelo neoliberal criado no tempo de Pinochet por um “Estado de bem-estar como o de muitos países europeus”. Coloca no centro da ação política a agenda verde, os direitos humanos, a dignidade no trabalho e a igualdade de género. Anuncia amplas reformas económicas e sociais (saúde, educação e sistema de pensões).
Boric representa uma esquerda millenial que nada tem a ver com a de Alberto Fernandez/Cristina Kirchner na Argentina, de Luís Arce na Bolívia ou de Pedro Castillo no Perú. Também muito, muito distante do que Lula propõe para o Brasil.
Outro bom sinal dado pela democracia chilena: logo no dia seguinte à eleição o presidente eleito, Boric, teve longa sessão de trabalho com o cessante, Piñera. Prevalece a vontade de harmonia e o máximo possível de reconciliação nacional no país com fundas feridas sociais. Boric está a desautorizar quem lhe colocava a etiqueta de intolerante esquerdista radical.
O Chile necessita de modernização social, política e económica. Boric promete “trabalhar com todos” para a conduzir.
Temia-se que estas eleições no Chile aumentassem a fratura social e política. Afinal, há sinais de que as lideranças políticas vencedoras e vencidas se dispõem a afastar essa ameaça. Até a levarem o conflito para a procura de entendimentos.
No próximo ano há eleições presidenciais em outros dois países determinantes na América do Sul, o Brasil e a Colômbia. Este exemplo chileno de diálogo sem renúncia às opções ideológicas pode ser um estímulo para a qualidade das escolhas que esses dois grandes países vão disponibilizar aos eleitores. Já chega de radicalismo ultra.
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