Uma das questões determinantes nas eleições midterm desta terça-feira nos Estados Unidos da América passa por um nome que não consta nos boletins de voto: é o de Donald Trump, e a questão é a de avaliar se o julgamento pelo eleitorado americano lhe dá ou não ímpeto para voltar a disputar a presidência.
Trump tem usado estas eleições para fazer campanha, tanto pelos candidatos fiéis que ele impôs ao partido Republicano – como por ele.
Com as sondagens a anteciparem probabilidade de os republicanos conquistarem a maioria em pelo menos uma das duas câmaras (a dos Representantes, 435 lugares) no Congresso, Trump prepara-se para reivindicar esse resultado como uma vitória pessoal com o plano America First da corrente “pós-democrática” que ele encabeça.
Se os republicanos somarem à maioria na Câmara dos Representantes também a conquista do Senado, então a vitória será um triunfo para o ex-presidente, que continua a recusar ter sido derrotado nas presidenciais de há dois anos.
Há a possibilidade de o Congresso dos EUA ficar dominado por eleitos que defendem essa mistificação das “eleições roubadas” e que Biden não é um presidente legítimo.
São inquietantes sintomas de febre antidemocrática nos EUA.
As sondagens destes últimos dias confirmam o que mostraram nos últimos meses: há duas Américas, cujo peso eleitoral é semelhante, e sem qualquer base de diálogo e ainda menos de convivência. O assalto popular ao Congresso, em Washington, em 6 de janeiro do ano passado e a recente agressão ao marido da líder democrata no Congresso revela o potencial de violência física que está instalado.
A banalização da violência verbal com rejeição da legitimidade do adversário, essa já está em nível impensável. Quando a perda de respeito pelo adversário atinge este grau é a saúde democrática do país que fica em causa.
Qualquer que seja o resultado destas eleições, a fratura vai continuar. Obviamente, se os republicanos não conseguirem a vitória que esperam, a ala “não trumpiana” nos republicanos vai querer travar a nova escalada do ex-presidente.
Não se espera alguma vantagem retumbante. A decisão vai ficar assente em apenas um punhado dos 50 estados: o apuramento, muito renhido, na Pensilvânia, Georgia, Nevada, Arizona e New Hampshire vai resolver o resultado desta eleição. Nos outros estados tudo parece atribuído, ainda que não seja de excluir surpresa.
É da tradição que as eleições midterm sejam ganhas pela oposição. Foi assim em todas as últimas 25, exceto em três – as últimas em novembro de 2002, quando no tempo de Bush (filho) os republicanos ganharam, ainda com a unidade gerada pelos ataques terroristas de 11 de setembro.
Há que ter em conta que a presidência Biden, nestes escassos dois anos, conseguiu superar as expectativas, que eram muito baixas.
Surpreendentemente não se dá pela existência da vice Kamala Harris, que tinha aparecido promissora. Mas a presidência Biden conseguiu resolver a emergência gerada pela pandemia tão mal administrada por Trump, fez aprovar um pacote de medidas de adaptação e combate às alterações climáticas (incluindo a ambiciosa descarbonização da indústria automóvel), lançou uma estratégia para a produção de semicondutores sem dependência da Ásia, ativou um vasto plano de segurança social que recupera o “Health Care” do tempo de Obama que prometeu saúde para todos, ampliou apoios financeiros aos estudantes universitários e montou a coligação internacional que está a dar robusta ajuda à Ucrânia para responder à invasão cruel e ilegal da Rússia de Putin.
A inflação alta que se repercute no custo do carrinho de compras no supermercado e no depósito de combustíveis vai certamente penalizar os democratas de Biden. Mas apesar da inflação alta o desemprego continua baixo.
Está por avaliar que efeito vai ter a decisão do ultraconservador e muito politizado Supremo Tribunal que reverteu a proteção dada nos últimos 50 anos ao direito geral ao aborto. Há estudos que sugerem que este facto pode ser mobilizador de muitos cidadãos tradicionalmente abstencionistas para o voto nos democratas. Biden anunciou a intenção de combater a decisão do Supremo. Mas a realidade do custo de vida cara é, certamente, o argumento de maior peso – e que favorece a oposição republicana.
Biden, com 50 anos de experiência como negociador político, teve há 15 meses um erro que salpica a imagem de competência: a atribulada e precipitada retirada americana do Afeganistão com entrega de Cabul aos talibã que continuam a usar cartilhas medievais.
O presidente Biden nunca conseguiu a popularidade de Obama. Mas é uma trincheira na defesa da democracia de que a América é símbolo – ainda que com defeitos.
Mesmo que perca as duas câmaras do Congresso, Biden tem recursos para manter o rumo essencial da governação. Saberá negociar com os republicanos e pode utilizar a prorrogativa presidencial de ordem executiva.
Mas, nesse caso de presidência em minoria, a negociação do orçamento vai ficar muito complexa, várias das políticas sociais vão cair por falta de financiamento e até mesmo o empenho no apoio à Ucrânia ficará com a dimensão em discussão.
Tudo vai depender do voto nas eleições desta terça-feira. Tudo está muito dramatizado, tanto que neste último fim de semana três presidentes (o atual, Biden, e os antecessores, Trump e Obama) estiveram em campanha intensa no mesmo estado da Pensilvânia.
Muita gente na América terá a noção de que Putin está a desejar a derrota dos democratas – quanto mais não seja porque assim fica em causa a robustez do apoio à Ucrânia. É outro fator para a mobilização de eleitores.
O resultado destas eleições e o que vem a seguir está muito incerto. O mais inquietante é o tribalismo que, com delirantes teorias conspirativas, está a pôr em causa a qualidade da democracia na América.
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