Frances Haugen, uma ex-gestora de produto do Facebook, no dia 3 de Outubro deu uma entrevista ao icónico programa “60 Minutos” e fez declarações estarrecedoras sobre como Mark Zuckerberg, que é dono e senhor da plataforma (e ainda do WhatsApp e do Instagram) dá mais prioridade ao lucro do que ao bem-estar dos utilizadores.

A posição tão privilegiada que Haugen tinha dentro do império com mais de mil e seiscentos e noventa milhões de “habitantes”, levaram a que os seus comentários tivessem um impacto formidável. Além de abrir a boca, Haugen tinha fotocópias de milhares de documentos a comprovar o que dizia, e muitos tinham sido publicados pelo conservador Wall Street Journal durante três semanas.

Em menos de três dias já estava a depor na Comissão do Senado de Comércio, Ciência e Transportes – que já estava a investigar a plataforma. É de notar que o controle ou descontrole das plataformas sociais é a única temática em que republicanos e democratas estão de acordo. A ideia, cada vez mais real, é que é preciso regular o Facebook, já que o Facebook não se auto-regula.

Segundo Haugen, Zuckerberg não o faz por um misto de negação (da sua influência nefasta), de irresponsabilidade e de ganância. Parece que 120 mil milhões de dólares não lhe chegam. (Ainda não está ao par com Jeff Bezos, Bernard Arnault, Elon Musk e Bill Gates)

Zuckerberg, que começou a carreira inventando o Facebook e ao mesmo tempo trapaceando os sócios iniciais, como se vê no filme “A Rede Social”, nunca teria realmente sonhado com uma sociedade universal de pessoas interagindo para o bem comum, como gosta de dizer; ao princípio terá pensado apenas em fazer sucesso, mas, logo que conseguiu monitorizar a sua invenção, passou a sonhar com a forma de fazer mais dinheiro. O truque, como sabemos hoje, não é vender anúncios, mas vender informações aos anunciantes. Quanto mais personalizadas essas informações (pessoas louras, com preocupações de calvície, de médio rendimento, a viver em certa área, amantes de desenhos animados e gatos, etc. etc. por exemplo) mais certeiros os anúncios e mais valiosos para os vendedores.

Para complicar a questão, há ainda a política, a moral e uma série de parâmetros que não podem passar despercebidos e são usados por partidos, grupos de influência, etc. etc.)

Mesmo que Zuckerberg fosse um humanista místico, preocupado com o bem-estar de todos e cada um, seria muito difícil avaliar, e ainda menos controlar, o que dizem os seus assinantes. Mas, primeiro, certamente que não é; segundo, mesmo que o fosse, não conseguiria encontrar um algoritmo que desse voz a todos, sem censurar ninguém.

“O meio é a mensagem” como disse profeticamente o canadiano Marshall MacLullan em 1964, numa época em que a Internet não passava dum brilho nos olhos de Vinton Cerf e Bob Kahn. Talvez nem ele percebesse o que estava a dizer, mas acertou em cheio. Aos olhos de Zuckerberg, o conteúdo das mensagens não interessa, desde que elas se reproduzam aos biliões. Daí o famigerado algoritmo, tantas vezes remexido pelo próprio Facebook, à procura da viralidade (capacidade de se multiplicar) máxima para as mensagens que os utilizadores escrevem, com todo o tipo de intenções, desde mostrar o gatinho a massacrar toda a gente.

A discussão tem girado em torno da responsabilidade do mensageiro, sem levar em conta o que Haugen acaba de provar, que o mensageiro não é responsável ou irresponsável, antes um sociopata que não vê, literalmente, as consequências da sua irresponsabilidade.

Não pode ser acusado de ter sido assim inicialmente. Ninguém podia prever os desvios perversos que o conceito iria permitir. Tratava-se, vale a pena lembrar, de conectar os alunos de Harvard, sobretudo para permitir aos rapazes “avaliar” as raparigas. Era só essa intenção, um tanto ingénua e outro tanto machista, de universitários que se queriam divertir. Foi a pressão social que levou Zuckerberg e o ainda sócio Eduardo Savarin (que depois seria miseravelmente escorraçado, como outros) a alargar o “The FaceBook” às outras oito universidades da Ivy League, depois a todas as universidades dos Estados Unidos, a seguir ao país todo, e finalmente ao mundo inteiro. Até esta fase, a plataforma não ganhava dinheiro, só gastava. 

A segunda invenção formidável do miúdo que nem chegou a terminar o curso de Harvard foi precisamente essa, como pagar as contas dos servidores cada vez maiores.

Numa sociedade totalitária, como a chinesa, estas questões não se levantam. As redes são uma forma de controlar os cidadãos, e não custa nada ao Poder censurar uns e incentivar outros, aberta e orgulhosamente. A questão levanta-se nos países onde se pretende, talvez ingenuamente, dar liberdade e responsabilidade ao mesmo tempo. É essa a questão que nenhum governo ou regulador conseguiu ainda resolver.

Talvez a solução esteja na educação das massas – já pensadores do século XVII achavam que um povo educado saberia distinguir o bem do mal, embora até hoje esse nível de educação ainda não exista. Talvez nunca venha a existir.

Entretanto, as “forças do mal”, sejam elas a empresa a querer vender mais produtos inúteis, sejam governos a influenciar a política dum país estrangeiro, vão agindo alegre e impunemente. Entretanto, como Haugen acaba de confirmar, o Dono-Daquilo-Tudo mostra-se perplexo e diz que tem boas intenções, mas não quer fazer nada.

As redes sociais em geral, o Facebook em particular, destruíram a comunicação social tradicional que, apesar dos seus muitos defeitos e insuficiências, era de facto o “Quarto Poder”, e podia meter na ordem os outros três. Agora, esse Poder está na rua.

Uma solução imediata, parcial, mas com efeitos visíveis a curto prazo, seria obrigar o Facebook a "divestir" (vender) as outras plataformas que possui. O mais estranho é que ninguém fala nisso. O Congresso norte-americano, cuja decisão nesse sentido teria repercussões mundiais automáticas, nem sequer aflorou a ideia. A própria Haugen é contra.

Já houve precedentes de "divestimento", como em 1984, quando a AT&T, a telefónica nacional, foi obrigada a dividir-se em sete empresas regionais. Contudo, nestes 22 anos está quase terminada a junção dum novo monopólio. Quer dizer, não serviu de nada. Mas os telefones formam uma única rede, era inexorável que acabassem por se juntar. O mesmo não acontece com as redes sociais, que funcionam separadamente. Não é preciso ter Facebook para se aceder ao YouTube (que pertence a outro gigante, a Google.)

É verdade, a Google! Já nos tínhamos esquecido... Também está metida em vários processos, basicamente pela mesma razão, de usar os clientes como mercadoria. E também de priorizar os anunciantes nas buscas, e ainda de registar a navegação dos utilizadores. 

Mas essa é outra história. 

Por ora deixemos Larry Page em paz e vejamos o que dá a guerra a Zuckerberg. 

Títeres a precisar que lhes encurtem as rédeas não faltam.