O alvoroço veio de uma graça que escrevi nas redes sociais, dizendo que não (lá está, “não” que é o antónimo de “sim”) se devia mandar o Padrão abaixo, mas que se podia pelo menos trocar o nome para Padrão das Chegadas a Sítios Aonde Já Existiam Pessoas e Culturas. Só por uma questão de honestidade, mais nada. Descobrimos caminhos marítimos, sem dúvida, ficámos exímios a usar o astrolábio, e claro que consigo admirar a bravura daqueles navegadores. Eu mal tenho coragem para nadar até fora de pé, quanto mais meter-me num barco durante meses sem saber se vou chegar a algum lado.
Agora, não consigo só ver as coisas boas e ficar com o meu patriotismo aos saltos, sem entender que o imperialismo português foi também um saque e genocídio. Aceitar isto é ver a história completa, ao contrário do que muitos querem fazer parecer quando se põem aos berros contra o “revisionismo” e o “reescrever” da História. Quando se contava durante séculos (juntando a narrativa do luso-tropicalismo do Estado Novo – portugueses, os bons colonizadores) só a parte boa da História, passar a contá-la toda não é reescrever nada, é só uma questão de justiça.
O que me deixa surpreendido é a raiva que é dirigida a quem não tem um orgulho cego por esta altura da História portuguesa, como se fosse menos português por causa disso. É como se os “Descobrimentos” fossem um boneco de Dudu e, cada vez que se espeta uma agulha na narrativa boazinha, ou se diz que o Padrão dos Descobrimentos é uma celebração também (!) de um massacre, espeta-se também no ego de cada português.
Está tudo bem se quiserem ter tal orgulho nacional na época, mas não podemos tê-lo noutras coisas? Diria que sim. Por exemplo, se há figura portuguesa da qual me orgulho é Aristides de Sousa Mendes, que salvou centenas de judeus do holocausto, e de quem raramente se fala. Orgulho-me muito do nosso contemporâneo Miguel Duarte (recentemente notícia por ter sido ilibado da acusação de auxílio à imigração ilegal) por ter andado a salvar pessoas de morrerem afogadas ao tentarem fugir da guerra e da fome. Como estes, outros como a Catarina Eufémia ou o Salgueiro Maia. E a parte bonita disto é que cada um pode escolher os seus heróis. Não sei é se é preciso tanta raiva por não escolhermos os mesmos.
Fechando o assunto Padrão dos Achamentos (ou Descobrimentos, se quiserem, pronto), claro que deitá-lo abaixo não vai resolver, nem pouco mais ou menos, a questão do racismo hodierno. E mesmo que pudesse ser contraproducente fazê-lo, por favor, tenham a honestidade intelectual de não o comparar à Ponte 25 de Abril ou ao hospital de Santa Maria. A questão que importa realmente é sermos capazes de aceitar o nosso passado com tudo o que também tem de mau, por mais que seja desconfortável, para conseguir entender o presente e querer melhorar para o futuro.
Isto se quisermos combater o racismo e tornar-nos numa sociedade mais justa, claro. Se não quisermos, é prosseguir como estamos que já não nada para ver aqui.
Sugestões mais ou menos culturais que, no caso de não valerem a pena, vos permitem vir insultar-me e cobrar-me uma jola:
- The New Corporation: É dos documentários mais importantes que vi nos últimos anos.
- Judas and the Black Messiah: Muito bom filme.
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