Crónica o sapo e o escorpião — imagens finais
créditos: MadreMedia

Quarta e quinta-feira o país posicionou-se à frente das televisões para ver o último 007 português. Infelizmente, a estreia foi o que se esperava e afinal metia espiões, mas não era um 007, era um zero à esquerda. Fomos testemunhas do desnorte, desorientação e amadorismo com que é gerido o Ministério das Infraestruturas, um dos mais importantes desta legislatura. E quem o assegurou não foi só o acusador Frederico Pinheiro, mas também os acusados Eugénia Correia e João Galamba. Não fosse um dos factos, com que todos concordam, que os documentos se classificam à posteriori e depois de serem partilhados, e que dossiers como o da reestruturação da TAP só existiam no computador de um adjunto.

Galamba é o escorpião que começa por dizer na CPI ser conhecido por estudar os dossiers ao pormenor e preparar-se sobre os temas. Questiona-se agora o país, então porque é que o Ministro não se preparou para a CPI de ontem? Depois desta afirmação Galamba foi surpreendido com as frases que o próprio tinha dito na conferência de imprensa. Desconhecia pormenores dos dossiers da TAP, e juntou Ministros, e até o Primeiro Ministro, ao role de chamadas feitas na fatídica noite. Galamba tentou escudar-se na confusão de uma conferência de imprensa feita no calor dos acontecimentos. Disse que "reconstruir a verdade dá muito trabalho", mas todos nos lembramos que a conferência aconteceu dois dias depois do sucedido. Quanto tempo seria necessário para os eventos da noite de 26 de abril pararem de irradiar calor?

Era uma vez um escorpião que pediu a um sapo que o ajudasse a atravessar um rio. O sapo recusou, pois o risco de ser picado pelo escorpião e de morrer na travessia era grande. O escorpião, todavia, garantiu-lhe que isso não iria acontecer — ou não fosse fatal para o próprio, que não sabia nadar. O sapo acedeu, o escorpião apanhou a boleia e... finaram-se os dois a meio do caminho. Moral? Por vezes é mesmo difícil escapar à nossa natureza.

Depois de um ano de conversas entre Isabel Tavares e uma série de políticos, analistas e especialistas da nossa praça sobre os temas que marcaram a atualidade em 2022, a fábula serve agora de mote para uma rubrica onde se olha para a atualidade procurando saber quem foi sapo e quem foi escorpião da semana que passou.

Já no dia anterior, outro escorpião, Eugénia Correia também tinha dito que Frederico Pinheiro nunca se preparava nem sabia nada. Ora, a acusação cai em saco roto para todos os que assistiram à inquirição bem preparada do ex-adjunto.

A chefe de gabinete, aliás, foi uma figura central nas três inquirições. Galamba elogiou a excelente jurista que veio mudar tudo no gabinete, criticando de forma velada a gestão de Pedro Nuno Santos. Remeteu várias respostas para o que Eugénia Correia havia dito no dia anterior. E, até, quando lhe pedem uma perícia ao telemóvel, Galamba diz aceitar nas condições em que a sua chefe de gabinete havia aceitado. Acontece que a chefe de gabinete não aceitou nada, porque disse aceitar tudo, mas não poder aceitar ficar sem telemóvel.

Mas se há coisa que a CPI provou ser necessária é uma perícia ao telemóvel do Ministro. Galamba assume ter apagado uma mensagem enviada ao ex-adjunto, mas diz que era uma coisa sem importância que podia fazer crer que Frederico Pinheiro "agia de boa fé". Como os portugueses já duvidam da bondade das ações de todos os envolvidos, preferem ter provas cabais.

Até porque em mais um acto de fé, entretanto, houve um comunicado a assinalar as alegadas mentiras, e a referir o acesso às câmaras de segurança do edifício que poderiam provar que a versão dos factos de Pinheiro era falsa. O lançamento deste comunicado foi amplamente criticado pelos deputados, e percebeu-se que Eugénia Correia, uma das subscritoras, nem sequer o conhecia. Leu-o na pausa da Comissão, e explicou a confusão por considerar que uma assinatura tinha que ser feita pelo seu próprio punho. Mas, como em tudo neste caso, acontece que as imagens de video-vigilância, diz Eugénia Correia citando o IMT, curiosamente só funcionam no piso zero e não no quarto piso onde reside a dúvida do sucedido.

Pode dizer-se que alegar que a câmara tenha sido destruída de propósito é o adensar de teorias conspirativas. Mas o Governo tem estado envolvido em tantos casos, oferecendo tantas versões das mesmas histórias que se provam mais tarde ser mentira, que ninguém pode culpar os eleitores por já duvidarem de tudo. Ficaram mais coisas por saber nestas sessões da Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP do que aquelas que se sabiam. Mas as dúvidas geradas são sintomáticas do clima político que se vive.

Crónica o sapo e o escorpião — imagens finais
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O sapo desta semana salvou o escorpião há quinze dias, mas este acabou, previsivelmente, a envenená-lo em horário nobre. António Costa poupou-se ao triste espetáculo da CPI de Galamba e optou por ver uma bem mais alegre, e menos demorada sessão, o concerto de Coldplay em Coimbra.

Não sabemos se o Primeiro-ministro terá tido conhecimento do sucedido na audição de Galamba numa chamada por cerca da 1h00 da manhã. Mas soubemos que, a 27 de abril, descobriu que o SIS tinha sido ativado numa chamada por volta dessa hora. Isto se acreditarmos que o Secretário de Estado Mendonça Mendes - também lançado para a fogueira por Galamba - não lhe tinha dito antes.

Na Comissão Parlamentar de Inquérito, o Ministro envolveu directamente o gabinete do Primeiro Ministro na decisão da intervenção ilegal - e lamentável - do SIS. E, Eurico Brilhante Dias pode dizer que o Primeiro-ministro não participou na decisão de acionar o SIS para recuperar o computador do Ministério das Infraestruturas, porque ninguém dúvida disso nem questiona. Mas o Primeiro-ministro havia dito desconhecer que o SIS tinha sido chamado. E, agora, vem a público que o soube na madrugada de 26 para 27 de abril.

Se a pancadaria e a forma de lidar com as informações mostram a falta de sentido de Estado e o desgoverno do Ministério - seja qual for a versão verdadeira - a questão do SIS prende-se com algo mais grave, estrutural e que o país não pode assistir sem que haja uma ação.

A situação política do país mudou há quinze dias, e o silêncio do Presidente da República é por si só o suficiente para estarmos todos cientes da gravidade da situação.

João Galamba tornou-se um activo tóxico do Governo, mas de quem este não se pode livrar. É que António Costa usou-o como estandarte para um braço de ferro com Marcelo Rebelo de Sousa, que ia perder à partida. E terá sido avisado disso. Mas agora Galamba atira a todos os lados e ninguém o pode neutralizar, porque se for demitido a palavra de Costa fica (ainda) menos credível. Contudo, mantê-lo no Governo é uma roleta russa. A escolha de António Costa é difícil, mas é sempre resultado da escolha de António Costa. E, segundo a lenda, os dois afundarão envenenados.