Foi lançado recentemente em Bruxelas o relatório “Making Social Rights Work for Children” (Tornar Efectivos os Direitos Sociais das Crianças). Esta reflexão é da responsabilidade da rede europeia Eurochild que anualmente avalia o chamado Semestre Europeu a partir dos Direitos da Criança. Os conteúdos do relatório partem de relatórios técnicos concebidos pelos membros colaboradores da Eurochild em cada país, organizados a partir de um questionário base. Desde há 7 anos que colaboro com a Eurochild na elaboração do relatório português.
Falar sobre este trabalho é particularmente significativo para mim numa altura em que se celebra o “Dia Universal dos Direitos da Criança”, na medida em que poderá acrescentar contributos para os debates nacionais em torno das políticas voltadas para a infância e da juventude, consciencializando ao mesmo tempo da importância dos instrumentos disponibilizados pelas estruturas Europeias e que alguns países têm sabido aproveitar em benefício das crianças.
Esta reflexão começa necessariamente por chamar a atenção para a importância-chave do chamado ciclo do Semestre Europeu.
É durante o ciclo do Semestre Europeu que os 28 estados membros da União são monitorizados quanto à incorporação e execução dos objectivos expressos na estratégia Europa 2020 e quanto ao controlo macroeconómico e fiscal onde se inclui o Pacto de Estabilidade e Crescimento.
Grosso modo, a cada novo ciclo do Semestre Europeu, a Comissão Europeia analisa as políticas de reforma fiscal e estrutural de cada Estado-membro e providência recomendações. Na segunda fase deste ciclo anual, designado de Semestre Nacional, os Estados-membros implementam as medidas de política acordadas, representando este momento uma oportunidade única para a introdução de propostas à medida de cada Estado-membro.
Da enorme panóplia de instrumentos europeus disponibilizados aos estados destaco dois, recentemente apresentados, que facilitam a inclusão das crianças e dos seus direitos na documentação produzida durante este ciclo e, particularmente, nas propostas presentes na documentação produzida durante os semestres nacionais.
Um desses instrumentos é a Recomendação da Comissão Europeia, lançada em 2013, "Investir nas crianças para quebrar o ciclo vicioso da desigualdade". Esta recomendação defende abordagens a partir dos direitos da criança e de estratégias integradas para combater a pobreza infantil e promover o bem-estar. É neste documento que, pela primeira vez, a Comissão Europeia coloca explicitamente em paralelo os direitos da criança, o superior interesse da criança, a igualdade de oportunidades e o apoio para os mais carenciados, apelando aos estados da União que desenhem respostas de qualidade que possam ser posicionadas no centro dos esforços de combate à pobreza infantil. Convida os estados a "organizar e implementar políticas para combater a pobreza infantil e exclusão social, promovendo o bem-estar das crianças, através de estratégias multidimensionais". Assume como sendo um dos princípios orientadores da recomendação "combater a pobreza infantil e a exclusão social através de estratégias integradas que vão além de garantir a segurança material das crianças e promover a igualdade de oportunidades para que todas as crianças possam realizar todo o seu potencial".
Outro instrumento é o Pilar dos Direitos Sociais que pressupõe o reforço de acções concretas nos domínios da protecção e da inclusão social e que acautela no princípio 11 a situação particular do "acolhimento e apoio a crianças", declarando para este efeito de que "as crianças têm direito a serviços de educação e de acolhimento na primeira infância a preços comportáveis e de boa qualidade. Acrescenta ainda que as crianças têm direito à proteção contra a pobreza, tendo as crianças de meios desfavorecidos, em especial, direito a beneficiar de medidas específicas destinadas a promover a igualdade de oportunidades".
Recuando um pouco no tempo é oportuno referir que no mesmo ano em que a Comissão Europeia apresentou a Recomendação "Investir nas crianças para quebrar o ciclo vicioso da desigualdade” não foi atribuída nenhuma REP, pela Comissão Europeia, a Portugal, por este país estar em 2013 sujeito a um procedimento por défice excessivo e monitorizado pela Troika. Com a saída da Troika em Maio de 2014 será no PNR de 2016 que encontramos o primeiro programa nacional de reformas verdadeiramente informado e comprometido na implementação dos princípios explícitos da Recomendação e que, entre outras matérias, explicitamente assume o combate à pobreza como uma prioridade nacional. É nesse documento que Portugal se compromete perante a Europa a repor apoios que garantissem "mínimos sociais aos cidadãos em condições de maior vulnerabilidade (como o Rendimento Social de Inserção (RSI) e o Complemento Solidário para Idosos (CSI), a reposição das regras de atualização das pensões e outras prestações; o aumento sustentado da Retribuição Mensal Mínima Garantida (RMMG), de 505 euros para 530 euros; e a promoção do acesso a bens públicos de primeira necessidade". E, claro está, aquilo que naturalmente uma Europa comprometida com a Convenção dos Direitos da Criança esperaria: a "implementação da estratégia nacional de combate à pobreza de crianças e jovens que, de forma integrada, recupere a centralidade do abono de família como apoio público de referência às famílias". Deste modo, o PNR de 2016, reconhece a importância de um programa nacional de combate à pobreza infantil que de algum modo parte de uma estratégia mais ampla de combate à pobreza, designadamente das famílias com crianças, dos idosos e dos trabalhadores pobres.
Portugal manifesta com isto uma visão horizontal dos problemas sociais ao colocar como desígnio nacional o reforço da coesão e a igualdade social ao nível da produtividade, competitividade e endividamento da economia. Propõe também um programa nacional que promovesse o sucesso escolar e maior equidade nos sistemas de ensino nacional.
No ano seguinte, no PNR de 2017, a estratégia é reforçada: "Em 2017, será prosseguida uma abordagem articulada de diversas medidas sectoriais complementares apostando em medidas de proximidade, com um foco particular nas crianças e nas suas famílias, designadamente, através do desenho de uma Estratégia de Combate à Pobreza das Crianças e Jovens, dirigida em particular à primeira infância e que prevê a conjugação com medidas complementares no âmbito da educação e da saúde, e um acompanhamento das crianças beneficiárias de abono de família, alertando para situações de precariedade e possibilitando uma ação mais integrada do sistema de proteção social, em casos de activação"
E é a partir deste momento que se observam inúmeras propostas que visam directa ou indirectamente por já em marcha uma potencial estratégia nacional de combate à pobreza infantil e que incluirá, por exemplo:
- Um Programa Operacional para a Promoção da Educação - OPRE, iniciativa voltada para jovens estudantes de ensino superior, oriundos das comunidades ciganas e que se proporia a atribuir 30 bolsas de estudos universitárias e medidas de treinamento, orientação e acompanhamento;
- O Programa Nacional para a Promoção do Sucesso Escolar no qual as escolas se poderiam inscrever num plano de ação estratégico para melhorar os processos de aprendizagem e o sucesso escolar e que aparentemente complementaria o programa TEIP - Territórios Educativos de Intervenção Prioritária um programa de longa data e bem sucedido que se especializou na prevenção e redução do absenteísmo, abandono escolar e situações de indisciplina e de violência no espaço escolar;
- A Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania implementada em fase piloto no ano letivo 2017/2018 em 235 escolas públicas e privadas integrantes do Projeto Curriculum Autonomy and Flexibility e procuraria que os alunos desenvolvessem e participassem activamente em projetos que promovessem a construção de sociedades mais justas e inclusivas, respeito à diversidade e defesa dos direitos humanos.
Contudo, até ao momento (Novembro de 2018), e apesar de já estar a decorrer o segundo ano da sua implementação, não existem ainda resultados disponíveis sobre os seus impactos. Ao nível da educação pré-escolar, foi proposta, apesar de ainda insuficiente, uma expansão da rede, com o objetivo de alcançar em 2019 uma efetiva universalização do acesso ao ensino pré-escolar às crianças a partir dos 3 anos de idade; aumento gradual do abono de família para crianças entre os 12 e os 36 meses; o reforço do Rendimento Social de Inserção de modo a representar aumentos de rendimento em excesso de 20% no caso de agregados familiares com crianças e o alargamento do acesso a livros didácticos gratuitos do 1º ano a todas as escolas públicas entre o 2º e o 4º ano já a partir do ano lectivo 2017/2018.
Em Fevereiro de 2018, o Relatório do País referente a Portugal é lançado. Nele é feita uma referência explícita às medidas de melhoria da conciliação entre vida profissional e familiar que beneficiam as crianças: "47,2% das crianças de 0-3 anos estavam em creches formais em 2016, apoiando a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho. Foram tomadas recentemente medidas políticas destinadas a promover o equilíbrio entre a vida profissional e a vida privada, nomeadamente no que respeita à extensão dos direitos de licença parental. Em particular, Portugal prorrogou recentemente o período de licença de paternidade para um máximo de 25 dias úteis (anteriormente 20 dias úteis), dos quais 15 são obrigatórios (anteriormente 10) e devem ser tomados durante o primeiro mês após o parto". Mais à frente, o relatório destaca o acesso das crianças aos serviços de saúde quando menciona que as "cobranças foram reduzidas pela primeira vez em 2016 e ampliaram os grupos elegíveis para isenções, incluindo desempregados, gestantes, crianças e pessoas com certas condições médicas". Apesar da enumeração de diversas medidas dirigidas à criança e ao seu bem-estar, da bibliografia não constam referências bibliográficas de suporte a publicações no domínio dos direitos da criança e dos direitos sociais em termos gerais, nem tão pouco a relatórios internacionais que apresentam retratos de Portugal nestes domínios, nem que façam propostas.
Espera-se que esta situação se possa alterar já a partir do próximo Semestre Europeu de modo a que Portugal comunique de modo mais assertivo o seu comprometimento com a aplicação da Convenção dos Direitos da Criança. As ausências mais notadas continuam a ser medidas concretas dirigidas a grupos mais vulneráveis de crianças. O caso mais preocupante continua a ser a situação particular das crianças entregues a instituições. Já há longos anos que o estado português ao não favorecer de modo claro e eficaz as medidas de acolhimento familiar viola o direito a milhares dessas crianças a crescerem numa família fazendo de Portugal, na Europa ocidental, um flagrante exemplo de más-práticas nesta matéria recorrentemente citado em documentos internacionais.
Regressando a 2017 e à intenção da estratégia: “uma abordagem articulada será adotada com uma série de medidas setoriais complementares focadas em medidas de proximidade, com foco particular nas crianças e suas famílias, em particular através da elaboração de uma Estratégia de Combate à Pobreza em Crianças e Jovens”. A conclusão mais óbvia é que até este momento não avançou (Novembro de 2018).
No entanto, e quanto às crianças e aos seus direitos em Portugal, o último relatório da Eurochild destaca globalmente alguns progressos positivos na redução da pobreza e da exclusão social, ainda que moderada.
Apoiado no Relatório de 2018 da Comissão Europeia sublinha, por exemplo, o aumento do número de matrículas em creches, o aumento dos benefícios familiares e as medidas para incentivar o sucesso educativo e a redução das taxas de abandono escolar. Afirma que "à medida que os esforços de Portugal para reduzir a pobreza e a desigualdade melhoram, vemos a taxa de "risco de pobreza ou exclusão social" do país aproximar-se da média da UE". A Comissão destaca que "o impacto das transferências sociais na redução da pobreza é limitado e a pobreza no trabalho permanece alta em 8,3%, especialmente para as famílias com crianças dependentes cuja taxa é de 13%". Acrescenta que num contexto nacional em que as desigualdades e os problemas económicos subsistem o relatório relativo a Portugal não tomou as crianças em consideração ao não considerar as várias causas da pobreza infantil. As Recomendações Específicas por País omitem decepcionantemente as crianças, enfatizando consistentemente o crescimento económico. Elogia de seguida os progressos na área dos cuidados de saúde, "uma vez que as taxas de utilização foram reduzidas em 2016 e os grupos elegíveis para isenções incluem, entre outros, mulheres grávidas e crianças. Espera-se que isso tenha um impacto positivo no acesso das crianças aos cuidados de saúde".
A Comissão observa também, e disso também nos dá conta, de que o abandono escolar precoce tem vindo a diminuir constantemente na última década, caindo para 12,6% em 2017, mas mantendo-se acima da média da UE de 10%. Observa também que os "indicadores mostram que a retaguarda socio-económica dos jovens ainda determina as suas realizações escolares". É elogiado o recente aumento da licença de paternidade de 10 para até 25 dias úteis.
Uma das fragilidades do caso português, segundo a Eurochild, é a ausência no Semestre Europeu de medidas que favoreçam claramente o direito das crianças à participação que se vinculem directamente aos princípios orientadores presentes na Recomendação da Comissão "Investir nas crianças para quebrar o ciclo vicioso da desigualdade". A este propósito o relatório destaca ainda que o impacto da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania implementada em 2017-2018 ainda não foi divulgado, "recomendando que o Relatório do País do próximo ano tome em consideração essa Estratégia".
Analisando o Orçamento de Estado 2019, recentemente aprovado, a implementação de uma estratégia nacional de combate à pobreza infantil não é sequer referida, apenas são mencionadas a Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo 2017-2023 e a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania. As crianças são destacadas no Artigo 106.º: "O Governo toma as medidas necessárias com vista ao alargamento da prestação social para a inclusão a crianças e jovens com idade inferior a 18 anos no segundo semestre de 2019".
É por isso fundamental que no Dia Universal dos Direitos da Criança todos aqueles que batalham diariamente, de modo mais visível ou menos visível, pelos direitos de todas as crianças e jovens, se unam, questionando intensamente, por exemplo, sobre o grau de importância política que Portugal atribui hoje às questões da pobreza infantil e da exclusão social nos seus Programas Nacionais de Reforma; a extensão em que Portugal desenvolve estratégias ambiciosas sustentadas pelos direitos da criança; em que medida os fundos da comunitários para a estratégia que se segue, e que se enquadra no Portugal 2030, serão direccionados para apoiar a inclusão social e o bem-estar das crianças e, concretamente, dos grupos mais vulneráveis de crianças, dos quais são exemplo as medidas que favoreçam a desinstitucionalização de crianças e a sua colocação em respostas de acolhimento familiar; se existe a participação efectiva das organizações individuais ou colectivas de crianças e das crianças nesse processo inerente à estratégia Portugal 2030; em que medida a Recomendação da Comissão "Investir nas crianças para quebrar o ciclo vicioso da desigualdade" e o Pilar dos Direitos Sociais nos domínios da protecção e da inclusão social informou a preparação de tudo isto.
É por isso oportuno reforçar que medidas para combater a pobreza e a exclusão social — e em particular a pobreza infantil —contribuirão invariavelmente para alcançar os grandes objectivos que se venham a consensualizar dentro da Estratégia Europa 2030. A estratégia portuguesa em matéria de inclusão social, deve por isso dedicar um capítulo específico à pobreza infantil. O Programa Nacional de Reformas não deve apenas limitar-se a sugerir uma estratégia de combate à pobreza infantil, mas antes deve comprometer-se com a sua efectivação através de medidas concretas para a sua redução. Deve por isso favorecer uma abordagem global da pobreza infantil que facilite o acesso das crianças a serviços de qualidade, à sua capacitação e aumento da sua participação em actividades de cariz social, recreativo e cultural.
Só deste modo é que Portugal poderá de modo competente activar as ferramentas que a União disponibiliza, no sentido de favorecer o bem-estar de todas as crianças na Europa e que impedirá que em 2019 estejamos a perguntar: “Onde pára afinal a estratégia nacional de combate à pobreza infantil?”
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