O mundo inteiro tem seguido o período eleitoral norte-americano (que termina com a eleição, a 8 de Novembro) em estado de suspense incrédulo. 

O suspense deve-se ao receio de que o eleito seja Trump, pelas suas afirmações. Declarou repetidamente não apoiar a guerra na Ucrânia; diz que a resolverá “com um telefonema”, “em 24 horas”, o que implica necessariamente a entrega aos russos de territórios ucranianos. Trump ainda fez outras declarações assustadoras para os europeus, como que “Putin pode invadir quem quiser”; e terríveis para os imigrantes atualmente nos Estados Unidos - fará “a maior deportação da História” - e para os cidadãos americanos em geral, ao endossar um projecto autocrático expresso no documento ultra conservador “2025” da Heritage Foundation.

A incredulidade deve-se ao facto de um narcisista patológico, que não esconde os seus sentimentos de vingança em relação aos desafectos, nem a vontade de substituir os funcionários do aparelho de Estado por “loyalists”, ter o apoio incondicional, fanático mesmo, de cerca de metade do eleitorado.

Estes receios foram multiplicados pela recente decisão do Supremo Tribunal Federal de que o Presidente dos Estados Unidos é praticamente inimputável de tudo o que fizer, o que lhe dará autorização legal para o que lhe apetecer - um Rei, no sentido das monarquias absolutas pré-Revolução Francesa.

Não deixa de ser surpreendente ver como Donald Trump, um homem de negócios desonesto e mentiroso compulsivo, conseguiu em poucos anos - mais exactamente desde que perdeu as eleições de 2020 - transformar o Partido Republicano, conservador, tradicional, patriótico e defensor do papel activo do país na política mundial, no Partido Trumpista, reacionário, isolacionista, racista, teocrático e absolutamente fiel ao seu presidente. Aos poucos, todos os líderes republicanos (governadores, senadores, deputados) passaram de críticas veladas a Trump a servidores subservientes, defendendo sem rebuço as mais inacreditáveis afirmações do seu chefe. 

A convenção do partido, a 15 de Julho, consagrou definitivamente Donald Trump como uma espécie de profeta protegido por Deus - foi a vontade divina que o salvou do atentado de 14 de Julho - ungido sem rebuço por todos aqueles que anteriormente o tinham criticado. Foi também o momento em que o Rei apontou o seu vice-Presidente, J. D. Vance, uma escolha que vale a pena analisar em pormenor.

Normalmente o candidato a presidente escolhe um vice-presidente que compensa as suas fraquezas, ou seja, que seja de um Estado em que o candidato não tem muita força, e que apresente políticas complementares, apelando para os eleitores indecisos. Trump, que na altura da convenção estava com uma vantagem notável nas sondagens - em grande parte devido à fraqueza de Joe Biden, envelhecido e confuso - não teve essas preocupações. J.D. Vance é senador do Ohio, um estado fortemente republicano. As suas políticas são ainda mais radicais do que as de Trump; declara-se anti-aborto (um tema que Trump tem evitado), a favor da família tradicional cristã (contra o divórcio, mesmo que a mulher seja maltratada), a favor da deportação em massa dos imigrantes e contra a ajuda à Ucrânia. Ou seja, Vance não acrescenta nenhuma vantagem em relação aos eleitores que possam ter dúvidas quanto às ideias de Trump, antes pelo contrário, reforça as opiniões mais radicais da sua base.

Mas outro aspecto importante nesta escolha: Vance, com 39 anos, torna-se automaticamente o sucessor de Trump, que tem 78 anos. Ou seja, o Trumpismo passa a ser uma doutrina com um futuro mais longo do que o seu fundador. Tal como o Peronismo, uma doutrina populista muito semelhante, que empestou a política da Argentina muito depois da morte dos seus fundadores (Evita e Juan Peron), o Trumpismo passa a ser uma ideia sem fim à vista. As dezenas de ultra-conservadores que subscreveram o Projecto 2025, agora com um líder viável, e já apoiadas por decisões do Supremo Tribunal, garantem que o Trumpismo sobreviverá a Trump. (Convém lembrar, não entrando em pormenores, que o Peronismo, tal como o Trumpismo, afirmava-se um defensor dos trabalhadores, os “descamisados”, enquanto prosseguia uma política favorável aos grandes capitalistas.)

Depois do atentado e da convenção, que decorreu num ritmo eufórico, parecia que a vitória de Trump estava mais do que assegurada. Mas logo a seguir, no dia 21, Biden finalmente reconheceu que não tinha condições de enfrentar Trump e desistiu de se recandidatar, escolhendo para o substituir a vice-Presidente, Kamala Harris.

Desde o famigerado debate com Trump, a 28 de Junho, onde se mostrou envelhecido, fraco e desorientado, que Biden estava numa situação muito difícil. As cabeças pensantes do Partido Democrata começaram a falar em substitui-lo, primeiro “off the record”, depois indirectamente, por fim abertamente. Todos reconhecem que Biden é um bom homem, honesto, com princípios, e indubitavelmente um pessoa que tem as ideias de que o país precisa. Mas a sua fragilidade, cada vez mais evidente, até no modo de andar, fazem dele um adversário incapaz de retorquir às diatribes de Trump. No debate, em que Trump disse 30 mentiras descaradas (medidas por vários analistas independentes), Biden não foi capaz de rebater nenhuma. Apesar da diferença de idades ser pouca - Biden, 81, Trump 78 - a diferença de energia é gritante. Se Biden fosse eleito, seria presidente até aos 86 anos e a degradação cognitiva, como se sabe, é acelerada. Muitos doadores democratas retiraram o seu apoio. Seguiram-se comentários de luminárias do partido, como o actor Jorge Clooney, depois Nancy Pelosy, vários senadores… 

A decisão de Biden mudou imediatamente as regras do jogo. De repente os trumpistas viram-se perante um adversário para o qual não tinham preparado a habitual companha de falsidades e distorções; e têm como litigante uma mulher negra com um currículo público inatacável. (Kamala é negra nos Estados Unidos; na realidade é filha de uma indiana e um jamaicano.) E tem 59 anos; agora Trump é que é o concorrente velhinho.

No primeiro dia como candidata, Kamala recebeu perto de 100 milhões de dólares de donativos, um indicador incontornável do apoio dos democratas. Além disso recebe automaticamente os fundos da campanha de Biden. Não precisa de vender ténis dourados, bíblias e livros de poesia, como Trump.  (Os livros de poesia carecem de uma explicação: são cinco volumes encadernados com todos os tweets que o ex-presidente escreveu. Isto dá uma boa ideia do fanatismo dos seus seguidores…)

Muita coisa ainda pode acontecer nestes 100 dias até à eleição. Há um elemento essencial que falta: quem será o vice de Kamala. Há vários candidatos, todos eles homens e brancos, como seria de esperar. Os principais são Andy Beshear, 46 anos, Governador do Kentucky, Gavin Newson, 56, Governador da Califórnia, J.B.Pritzker, 59, Governador do Illinoiis e Josh Shapiro, 51, Governador da Pennsylvania.

Na sua primeira apresentação depois de endossada por Biden, que callhou numa num liceu em Milwaukee, Kamala mostrou logo uma atitude aliciante: sorridente, à vontade, com sentido de humor, atacou Trump onde lhe dói (ela foi Procuradora, ele condenado em tribunal), defendeu claramente os seus valores pró-aborto e pró-classe média, esteve bem e foi bem recebida. Claro que agora terá de refinar o seu discurso e definir os pontos que interessam ao eleitorado norte-americano: inflação, custo de vida, emprego, desenvolvimento industrial e melhoria dos apoios sociais. Em todos eles o governo de Biden tem dados muito positivos, que ele não soube usar a seu favor, mas que ela não deixará de salientar.

Trump já recuou quanto ao próximo debate; quer que seja na Fox, um canal que lhe é favorável, e ainda não definiu data. O campo trumpista está a tentar ajustar a sua mensagem à nova situação. O campo democrata também tem muito em que pensar.

Uma coisa é certa: nestes dez dias, tudo mudou. O que parecia o comboio a alta velocidade do Trumpismo a caminho de Washington, agora parece uma competição mais equilibrada.

Os próximos 100 dias vão ser emocionantes!