Estava eu na piscina do hotel, onde me encontro a passar férias, quando oiço um senhor na espreguiçadeira ao lado a dizer: “Carlos, não ouviu o que o pai disse? Pare quieto!”. O meu cérebro deu um nó. Primeiro, nunca tinha ouvido um Carlos ser tratado na terceira pessoa pelos seus progenitores; segundo, o que faz uma família que trata os filhos por você num hotel de três estrelas? Pensei eu que aqui estaria resguardado de betos, pois já me basta viver em Alvalade e fazer parte do meio humorístico em Portugal. Afinal não.

Terá chegado a crise às boas famílias ao ponto de terem de partilhar piscinas de hotel com degenerados da Buraca? Ou serão os pais do pequeno Carlos pessoas que gostam de se fingir finas? Não sei, fiquei na dúvida até porque o nome Carlos é um bocado não binário: por um lado, pode ser nome de um mitra da Margem Sul, mas também deve haver aristocracia que dá o nome Carlos a um bebé porque existiu um rei com esse nome, que foi morto, muito por ter esse nome, suspeito.

Em muitos casos será tradição nas famílias e fruto do meio onde se inserem e não significa obrigatoriamente maior distanciamento e menos amor. Tenho a certeza que haverá quem trate os filhos por você que se preocupe e sejam melhores pais do que outros que tratam por tu. É como alguns pais mais a Norte que dizem caralhadas várias em frente aos filhos pequenos e que deixam em choque muitos puristas lisboetas. Não haverá relação directa entre isso e o nível de amor e educação que os filhos recebem. No entanto, é sempre estranho imaginar como é que se decide tratar um bebé por você. Como é que isto surge? Quem é que trata um bebé de 6 meses por você? “Vá, Martim, vá gatinhar ali até à sua mãe” ou “Matilde, parece impossível, ainda não sabe dar turrinhas. Tem de se focar!”. Lá está, se vier de tradição familiar e sempre se fez assim, era duas bofetadas na mesma, mas percebo. Agora, numa família onde isso nunca aconteceu, um casal que decide começar a tratar os filhos assim só porque acha fino e quer ser diferente, acho que alguém devia fazer uma queixa a ver se a CPCJ sinaliza a situação e retira os filhos ao casal para nãos sofrerem mais abusos.

Filhos que tratam os pais por você já é estranho, mas consigo compreender melhor em alguns casos, dependendo das gerações. Por exemplo, eu sempre tratei os meus avós por você, mas o meu irmão, nove anos mais novo, já os tratava por tu. A sociedade vai evoluindo e ficando mais aberta e perdendo esses preconceitos de “no meu tempo havia respeito”. Por exemplo, agora trato todos os meus avós por Senhor, porque como estão mortos preciso de falar primeiro com o intermediário. Irmãos que se tratam por você? Só faz sentido se forem dois irmãos que se acabaram de conhecer e estivermos perante diálogos de um filme porno de incesto.

Achar que o tratamento na primeira ou terceira pessoa está relacionado com o respeito é só mais um preconceito da nossa sociedade do qual somos todos vítimas. Por exemplo, já me aconteceu insultarem-me nos comentários de redes sociais, chamando nomes que insinuavam uma nova profissão liberal da minha progenitora. Fui lá responder na mesma moeda, mas tratando a pessoa por tu. A pessoa indignou-se “Tu? Mas andei consigo na escola para me tratar assim seu filho de uma...?”. Portanto, uma pessoa acaba de insinuar que a mãe de um desconhecido não passa recibos, mas quando leva resposta foca-se no número da pessoa em que é tratado e exige respeito. Aqui está a prova que tratar na terceira pessoa não significa nada. Há pessoas que dizem ter Deus dentro de si e tratam-no por você. Era de esperar que se Deus está dentro delas houvesse mais proximidade e intimidade. Eu, pelo menos, sempre que estou dentro de alguém, prefiro ser tratado por tu, senão parece que estou a pagar.

Não gosto que me tratam por você. Prefiro sempre, sempre, que me tratem por tu. Seja alguém mais novo, mais velho, conhecido ou desconhecido, CEO de uma empresa ou empregado de um café. Primeiro, faz-me sentir menos velho e, segundo, acho que cria uma proximidade imaginária de que nos preocupamos todos uns com os outros. Se me virem na rua não me tratam por você e, se falarem comigo nas redes sociais, nunca, mas nunca me tratem por voçê.

Para ver: A quiet place

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