Há duas semanas, o consórcio de jornalistas Forbidden Stories, baseado em Paris, em associação com a Amnistia Internacional e 17 empresas noticiosas, que incluem o “Washington Post”, “The Guardian” e o “Le Monde”, descobriram um software israelita, chamado Pegasus, que penetra nas comunicações pessoais de qualquer pessoa – mas não de pessoas quaisquer: são jornalistas, activistas de direitos humanos, gestores e políticos, escolhidos pelo “cliente” do programador.

Ou seja, já não se trata de saber que o João Ninguém compra camisolas de lã, ou que a Maria das Dores é hipocondríaca; trata-se de vigiar as opiniões e as decisões de pessoas como Emmanuel Macron, Presidente da República francesa, Khadija Ismayilova, jornalista do Azerbaijão que investiga a corrupção no seu país, ou a família de Jamal Khashoggi, o jornalista assassinado pelos sauditas. 

O Pegasus é produzido e gerido pela empresa israelita NSO, que, na sua página na Internet, afirma orgulhosamente que se dedica a espionagem cibernética (“cyber inteligence”) em nome da segurança e estabilidade globais. E acrescenta: “Criamos tecnologias que ajudam as agências governamentais a deter e investigar o terrorismo e o crime, para salvar milhares de vida em todo o mundo”.

Bons rapazes, portanto. Só que, de acordo com a investigação publicada no “The Guardian, os clientes da NSO são sobretudo governos fofinhos preocupados em salvar vidas: Azerbaijão, Cazaquistão, México, Ruanda, Arábia Saudita, Hungria, Índia, Emirados Árabes Unidos, Marrocos.

Segundo o “The New Yorker”, entre os “alvos” estão mais de 180 jornalistas – vivos, porque alguns já foram eliminados, como a maltesa Daphne Caruana Galizia, que investigava corrupção no seu governo.

Claro que se pode alegar que os governos “bons” também espiam as “pessoas de interesse”, mas, no caso concreto dos jornalistas, há leis que o proíbem expressamente e a actividade tem de ser feita por baixo do pano... Aliás, lembramo-nos do caso ocorrido em 2016, em que a Apple se recusou a desencriptar para o FBI os iPhones dum casal de terroristas — quem resolveu o problema foi uma empresa israelita, cujo nome na altura não foi publicado, mas que pode ter sido a NSO. Os israelitas são muito bons e, pelos vistos, não têm problemas éticos, como mostra o facto dos Emirados estarem entre os seus clientes.

No caso da NSO, não há nada a esconder. Afirmam que só trabalham com governos legítimos e agências governamentais oficiais. Portanto, se é legal, é ético. 

A questão não está na legalidade, evidentemente. Está nos poderes inerentes à soberania de um país, que não são passíveis de comercialização. Quer dizer, haver prisões geridas por privados pagos pelo Estado, como nos Estados Unidos, é escandaloso. Ou, no caso português, os correios serem privados, também é – menos, porque uma carta perdida não é tão grave como um detido esfomeado e sem assistência médica.

Além disso, a espionagem feita por agências do aparelho de Estado, é norma corrente. Em maio descobriu-se que a Dinamarca – uma social-democracia onde as liberdades e a transparência são respeitadas – andava a espiar a chanceler alemã Angela Merkel, a pedido dos norte-americanos.

Aliás, nos Estados Unidos, que se auto-espiam abundantemente, a lei não o permite, e a recente descoberta de que o Secretário da Justiça de Trump, William Barr, teria dado ordens para que alguns jornalistas (da CNN, e do “Washington Post”, com certeza...) fossem grampeados, causou algum escândalo. (Tentámos não usar a palavra “escândalo” ao longo desta crónica, porque perdeu qualquer relevância. Quando tudo é escandaloso, não escandaliza. Lembra-se dos “Panamá Papers”?)

Isto para não falarmos da China, onde o domínio total do que toda a gente pensa é política oficial e ainda se orgulham dela.

O que torna o caso do Pegasus especial não é a actividade, mas os notórios objectivos com que é feita: governos totalitários, autocráticos ou corruptos (caso do México) que vigiam as comunicações dos jornalistas para controlar o único meio que ainda existe de os expor. Não estamos a dizer que o jornalismo é uma nobre actividade exercida exclusivamente por impolutos profissionais; estamos a dizer que o jornalismo, por mais imperfeito que seja e partidário que possa ser, ainda é a única maneira credível de fazer chegar ao público as falcatruas do Poder. (As redes sociais, já se sabe, têm credibilidade zero.) Além disso, saber o que um jornalista anda a investigar é uma maneira de atrapalhar a sua investigação, ocultar provas, corrigir deslizes.

Quanto ao Macron estar na lista, pode parecer estranho, primeiro porque deveria ter as suas comunicações devidamente encriptadas, segundo porque não é investigador. Mas com certeza que há outros governos, fofinhos e espinhosos, que querem saber o que ele diz à sua Brigitte. Ou então a Brigitte quer saber o que ele diz às outras... A NSO também podia por na sua lista de objectivos a eliminação do adultério e outros crimes bíblicos.

Resumindo: da próxima vez que quiser dizer mal do António Costa à sua cunhada, pense duas vezes.