É Argento, mas a lição pode ser de ouro - isto se aprendermos que as pessoas, mesmos as figuras públicas, nunca são personagens de ficção unidimensionais; ninguém existe apenas para engraçar ou desgraçar-se. É provável, contudo, que não queiramos aprender. Dá jeito que “os bons e os maus” sejam incapazes de se desviar dessa predestinação só para o heroísmo ou só para a vilania - assim podemos bater records na nossa modalidade atlética preferida: condenação pública em velocidade. Atrasa-se tudo quando percebemos que as vítimas têm capacidade de ser agressoras. E um dia cai o Carmo e a Trindade por descobrirmos que até os agressores estão aptos para ser vítimas.
Pelo que tenho lido nos últimos dias, esta história da Asia Argento fez soar todo o tipo de alarmes, até os despropositados. Era inevitável a atenção mediática, mas eu vou mais além: era indispensável. O movimento #MeToo, e toda a onda recente de revelações e reacções no âmbito dos abusos sexuais em Hollywood, iniciaram provavelmente a revolução mais importante desta década. Tal ameaça mediática aos abusos de poder terá consequências transversais e duradouras; é importante por isso que o assunto não esmoreça, que a cobertura não afrouxe. O problema é que, com as alegadas notícias feias sobre a Asia Argento, antes de se reacender a discussão salutar reacenderam-se desastrosos facciosismos.
Este episódio desencadeou dois comportamentos terríveis: do lado dos acomodados, dos machistas empedernidos e dos que suspeitam de oportunismo das vítimas, aproveitou-se a falha duma figura de proa do #MeToo para dar todo o movimento como falido. Já do lado dum femismo turrão (que só valida o feminismo se este estiver acossado) relativizou-se o delito da actriz italiana, e desconfiou-se severamente do acusador – algo que nunca tolerariam caso o potencial agressor fosse um homem.
Apesar de tão infelizes coaxos, duvido que a notícia desta semana tenha sido danosa para quem está na luta contra os abusos. Longe de mim defender Argento ou minimizar o que ela potencialmente terá feito, mas confesso-me optimista com o momento. Esta confiança não advém de actos reprováveis sucedidos num quarto de hotel em 2013, vem sim duma reflexão séria que se pode fazer em Agosto de 2018.
Reitero, sem pretensiosismo, a vontade de uma “reflexão séria”, pois não é admissível encarar a delicadeza do assunto sem pré-requisitos de seriedade. Se formos imponderados, e se nos apressarmos a caracterizar Asia Argento pela primeira veleidade que nos vier à cabeça, é muito provável que saia uma borrada justiceira. Convém então assentar algumas considerações sobre o episódio:
Primeiro, aquilo que a actriz alegadamente fez não desculpa em nada aquilo que alegadamente lhe fizeram. Da mesma forma, aquilo que a actriz fez não a torna merecedora daquilo que lhe fizeram. Ninguém merece ser violado, independentemente do que se tenha feito, do que se vá fazer, do que se tinha vestido, de quem se vá despir. Não há justiça poética quando a punição vem pela forma de violação; a violação nunca foi poética, é gatafunho truculento sem leitura possível.
É difícil contrariar o ímpeto punitivo mais implacável. Mesmo nós, os que não acreditam em karma, estamos sempre à espera que uma retribuição cósmica dê a provar aos malfeitores a sua própria malfeitoria. Mas se nos sentimos vindicados quando um abusador é abusado, não há como negar esta evidência: estamos a aplaudir um abuso. Faz-me lembrar o que tenho lido recentemente sobre a “festa brava”. Vejo boa gente que abomina tourada (como eu também abomino) a rejubilar-se quando um touro colhe, maltrata ou até mata um toureiro. Por muita volta que se queira dar, por muito discutível que isto seja, quando aplaudimos a justiça feita por um touro na arena, estamos a admitir que o lugar certo para um touro naquele momento era na arena – isso não me parece lá muito anti-tourada.
Em segundo lugar, creio que estes possíveis abusos de Asia Argento não enfraquecem a luta contra os abusadores. Quando uma das vozes principais do #MeToo, uma das vítimas de maior mediatismo, é passível de ser denunciada, percebemos que a rédea está cada vez mais curta. Recordo que há sempre riscos, quer seja o risco de acusações falsas ou o risco de relativizações comprometidas. Mas, por muito mentirosos que sejam alguns efeitos secundários, há esperança nesta purga; esperança numa cultura de verdade que floresça e numa cultura de atrevimento sórdido que se encurrale.
A impunidade de que vários abusadores gozam está directamente relacionada com a vergonha que um crime destes provoca nas vítimas. Não é preciso recuar muitas décadas para perceber o clima medievo em que estávamos mergulhados: era mais humilhante ser-se vítima do que violador; aos agredidos cabia o silêncio, aos agressores a gabarolice impune. É por isso que todos estes casos recentes (e o desta semana não é excepção) servem para encorajar e restituir a voz das vítimas. Não foi preciso educar-se o mundo para óbvio – que abusos sexuais são errados – mas é crucial falar-se do assunto para que se enfraqueça tanto o silêncio quanto a impunidade.
Em terceiro lugar, talvez este caso venha assentar definitivamente que temos de travar uma guerra aos abusos sexuais, não uma guerra de sexos. Mais uma vez vou pisar os calos das femistas rixosas. Não tenho a menor dúvida de que a larga maioria das vítimas são mulheres, e a larga maioria dos agressores são homens – isto é fruto de uma cultura vigente onde o poder ainda é muito desequilibrado. Ainda assim, não consigo admitir que esta campanha contra os abusos seja uma bandeira do feminismo, porque isso estaria a dispersar e compartimentar esforços que deviam ser concentrados.
A minha única reserva com o feminismo é quase do domínio etimológico. A meu ver, a igualdade de oportunidades entre sexos, ou o protesto contra abusos culturalmente enraizados, não são causas que favorecem apenas as mulheres, favorecem-nos a todos. É por isso que, embora me enquadre na definição dum feminista, tenho sempre a certeza de que não há nada ideológico ou tendencial nas minhas opções, apenas civismo. Querer que o feminismo se torne a norma faz de mim, no fundo, um anti-feminista.
Este desvio apenas para relembrar que a luta contra as agressões sexuais não pode ficar numa esfera parcial de defesa das mulheres. Se é verdade que, cultural e tradicionalmente, as mulheres são muito mais subjugadas e sujeitas a violações e abusos de poder, não é menos verdade que, cultural e tradicionalmente, os homens são menos afoitos a admitir e denunciar que foram abusados. No fundo é tudo a mesma cultura e a mesma tradição, onde as mulheres se têm por fracas e os homens não podem dar parte fraca.
É exactamente por isto que o caso recente envolvendo Asia Argento e Jimmy Bennet não deve cair em saco roto. Reaviva a discussão em torno de uma revolução que se quer imparável, e atenua este estigma ridículo de que um homem abusado por uma mulher bonita não é vítima, é sortudo.
Sítios certos, lugares certos e o resto
Sem fugir ao tema, é esta a recomendação da semana. Há quem diga que um ensaio confessional não é boa leitura de praia, mas estou aqui para contrariar as más línguas.
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