Para começar, olhemos para o inglês. Podíamos ter começado por outra língua qualquer, mas esta é uma língua famosa, digamos assim… Não se preocupe: havemos de chegar à nossa, não sem antes viajar no tempo.
Hoje em dia os ingleses dizem «mother», é verdade. Mas, há uns bons séculos, no tempo do Inglês Antigo, essa «mother» era «mōdor», o que me soa a nome de reino da Terra Média — essa mesma que foi reinventada, há uns anos, precisamente na Nova Zelândia.
Ora bem: há uns 1000 anos os ingleses diziam «mōdor». E há 5000 anos? Bem, por essas alturas ingleses era coisa que não havia — e a escrita estava ainda a dar os primeiros passos, o que nos impede de saber como se dizia «mãe». No entanto, os linguistas, nos últimos 200 anos, através de complexas comparações entre línguas, descobriram que muitas línguas da Europa e da Ásia pertencem a uma só família: a família indo-europeia.
Ora, através dessas comparações, chegou-se a uma forma provável para a palavra «mãe» tal como seria dita nessa língua muito antiga: «*méh₂tēr» (o asterisco serve para mostrar que a palavra é uma reconstrução e o h₂ não é nenhuma fórmula química, mas antes uma forma de representar um certo som para o qual não temos nem letra nem certezas).
Essa palavrinha reconstruída deu origem à «mother» inglesa — mas não só. Deu origem à «mâdar» persa, por exemplo. Deu também origem à «mãe» grega («mitéra»), russa («matʹ»), letã («māte»), irlandesa («máthair») e por aí fora. Curiosamente, deu também origem à «motër» albanesa, com a peculiaridade que, nessa língua, a palavra acabou por significar «irmã». Mistérios das línguas humanas…
Ah, pois! A tal língua indo-europeia desfez-se com o tempo. Lá pelo Norte da Europa, entre florestas antigas e alguma escuridão, transformou-se na guerreira «mother» inglesa, na carinhosa «Mutter» alemã, na abreviada «mor» sueca…
Pois, a mesma língua, mais a sul, deu origem à «mater» latina, que se foi transformando na «mamă» romena, na «madre» italiana e espanhola, na «mère» francesa, na «mare» catalã e, claro, na nossa palavrinha…
Chegámos, por fim, à nossa língua-mãe. A «mater» latina, neste canto da Europa, acabou por se tornar nesta palavra toda ela nasal, feita do inevitável «m» e, depois, do ditongo «ãe», que aflige os estrangeiros interessados em falar português. Quem não sabe, tem de aprender a controlar a saída do ar pelo nariz — nós fazemos isso sem dificuldade, mas peçam lá a um inglês para dizer «mãe» e verão como é difícil dizer as vogais nasais. Temos uma língua muito senhora do seu nariz, é o que é.
Ah, mas a palavra, mesmo dentro da nossa língua, muda. Já se escreveu «mãy» (e não só). Dizemos «mãe», mas também «mamã», «mãezinha» e todas as outras formas que multiplicam o carinho e o amor pela mãe. A mesma palavra, quando se ouve na boca dum filho a chamar a mãe ao longe, transforma-se noutra coisa: numa «mã-iiiiihn».
Ainda não acabou a viagem. Mesmo por cima de nós, temos a «nai» ou a «mai» galegas, a mostrar que as nossas palavras andam sempre ali na vizinhança das palavras dos vizinhos do Norte — e, como as línguas não param, a mesma «mai» aparece no cabo-verdiano, uma língua que nasceu do nosso português, continuando o mesmo eterno processo que nos trouxe até aqui a partir da tal palavra antiga que se dizia há 5000 anos — e que já vinha de outras palavras mais antigas, que já não conseguimos reconstruir, que o tempo apaga tudo, até as palavras mais bonitas.
Não importa. Há 5000 anos, algures na Europa, uma criança dizia «*méh₂tēr»; o meu filho diz «mãe», assim, com as três letrinhas apenas… As palavras mudam no tempo e no espaço, mas neste gesto de chamar a nossa mãe há qualquer coisa que nos une a todos.
Se o leitor não se importar, acabo esta viagem no tempo a dar um beijinho à minha mãe — e a todas as mães, em todas as línguas do mundo.
Marco Neves | Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu último livro é o Almanaque da Língua Portuguesa.
*Nota do autor: este texto foi escrito tendo como base uma crónica anterior.
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