1. Não canto o hino português. Também não gosto da bandeira (e prefiro que não me perguntem sobre Fátima, Futebol e Fado). Mas gosto de demasiadas coisas em Portugal para caberem aqui. Umas comem-se, outras são de tirar o fôlego, ou aquecem qualquer Inverno, ou fazem doer os ossos, de tão frias. Tantas que o melhor é não iniciar a lista. Amor a um país são muitos amores concretos, animais, vegetais, minerais, mais os que não se podem agarrar, como a luz, como a água, e mais serão se vivemos nesse país voluntariamente boa parte da vida.
Já amor à pátria por dever ou convenção, decorrência apenas de aqui ter nascido/crescido, tenho dificuldade em entender. Amor à ideia de pátria não é a minha praia. Mas não a confundo com nacionalismo. Nacionalismo não é amor, muito menos mais amor. Nacionalismo não é por nós. Nacionalismo é contra eles.
2. Quando foi a última vez que quem está a ler isto, e é português, pensou na letra do hino? Não a última vez que o cantou, mas a última vez que pensou no que estava a cantar?
O hino é curto e, para quem não é português, ou não o tem presente, vale a pena citar na íntegra:
Heróis do mar, nobre povo,
Nação valente, imortal,
Levantai hoje de novo
O esplendor de Portugal!
Entre as brumas da memória,
Ó Pátria sente-se a voz
Dos teus egrégios avós,
Que há-de guiar-te à vitória!
Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,
Às armas, às armas!
Pela Pátria lutar!
Contra os canhões
marchar, marchar!
Isto é o que os portugueses cantam em 2018.
3. Claro que será diferente ler as palavras do hino — escritas por Henrique Lopes de Mendonça, no fim do século XIX — sem a música de Alfredo Keil que lhes corresponde. A música catapulta o amor pátrio até às lágrimas, sobretudo quando onze homens estão plantados num relvado, de cabeça levantada, minutos antes do jogo começar. A música faz com que seja fácil alguém emocionar-se a cantar isto em circunstâncias contagiantes. Por si só, a música já é a arte mais contagiante.
Então, ouvindo letra com música será mais fácil perceber que milhões de portugueses ainda cantem o hino emocionados. Imagino que uma parte não pensa na letra, talvez nunca tenha pensado mesmo. Imagino, não sei, e por isso o título desta crónica é uma pergunta. Nem faço ideia se esses que não pensam mas cantam são muitos ou poucos. Ou se são mais ou menos do que os que pensam e cantam.
Em Portugal, onde há dias a televisão pública organizou um debate sobre o excruciante dilema “Descobertas ou Descobrimentos?”, tudo é possível. Não só não pensar, como impedir o mais possível que alguém pense, aumentando o ruído até à distorção absoluta.
4. Um passo atrás no tempo. Este hino — que se chama A Portuguesa — nasce de uma canção patriótica que Lopes de Mendonça e Alfredo Keil compuseram, na altura do Ultimato, em 1890, quando os ingleses exigiram que Portugal se retirasse das terras entre Angola e Moçambique. Foi uma reacção de combate a esse ultimato. A letra original é muito mais longa. Combatentes republicanos usaram depois a canção num primeiro golpe falhado, e a monarquia proibiu-a. Quando a República venceu, tornou-se o hino. Meio século depois, perante a variedade de versões, o governo criou uma comissão para fixar a oficial. Em 1957 ficou aprovada, e é essa que hoje se canta e toca.
Em plena ditadura salazarista — quando o regime tentava insuflar um novo fôlego no império, depois de maquilhar colónias em províncias ultramarinas, com um empurrão do jeitinho português de ser carimbado por Gilberto Freyre — os brados nacionalistas do hino estavam bem almofadados.
Mas em 2018, da primeira à última linha, parece uma caricatura. O hino português parece a caricatura dos defensores do “museu das descobertas”. Ou será “descobrimentos”? Este dilema que não quer calar.
5. Vários países mudaram hinos por boas e más razões. As más, podemos todos dispensar. Entre as boas estão mudanças de regime como o fim do apartheid. E entre as recentíssimas está a do Canadá. Onde antes os canadianos cantavam “in all thy sons command”, cantam agora “in all of us command”. Ou seja, onde antes o hino se referia aos homens, agora refere-se a todos. Gesto de paridade de um país com tantos ministros como ministras. Quando Justin Trudeau tomou posse perguntaram-lhe porque é que a paridade era tão importante para ele. Ele respondeu: “Porque estamos em 2015.”
Por tudo o que me faz amar Portugal, do cimo das Penhas Douradas à Fajãzinha das Flores, o que eu gostava que algum primeiro-ministro, algum presidente deste país respondesse assim:
— Porque não um Museu das Descobertas/Descobrimentos?
— Porque estamos em 2018.
— Porquê encarar agora a escala de seis milhões de escravos que Portugal traficou no Atlântico?
— Porque estamos em 2018.
— Porquê estabelecer a relação entre o passado colonial português e o racismo contemporâneo?
— Porque estamos em 2018.
— Porque é que a recente estátua do Padre Vieira com indiozinhos é anacrónica, equívoca e ofensiva?
— Porque estamos em 2018.
— Porque é que quando falamos numa propensão dos portugueses para a mistura temos de falar na violação sistemática a que foram sujeitas as mulheres indígenas e negras?
— Porque estamos em 2018.
O que é que 2018 tem de especial? A confluência de muitíssimas coisas que há décadas não conhecíamos ou em que nunca tínhamos pensado, pontos de vista novos, antes sem espaço, sem voz, fontes que antes não tinham sido consultadas, um ror de coisas que muitíssima gente mais devia poder conhecer, se essas coisas, esses estudos, essas criações, essas correcções de fábulas perpetuadas ao longo de séculos, pudessem ser amplificadas.
A melhor forma de amar um país não é deixar a nossa violência para os outros criticarem, estudarem — como defendeu recentemente o embaixador Seixas da Costa —, nem enterrar tudo isso, ou desvalorizar quem fala, aqui del rei, que quem fala assim odeia Portugal. Nada faz tão mal ao país, nada o estraga tanto como a desculpabilização infantil, o ufanismo distorcido do actual debate em defesa das “descobertas”/“descobrimentos”. Nada o impede tanto de crescer.
6. O caso da estátua de Vieira é espantoso por parecer um produto de 1960 inaugurado em 2017. Mas as estátuas, como os hinos, costumam ser produtos do seu tempo, uns mais afortunados, menos datados do que outros. Há hinos muito mais antigos do que o português que apenas celebram a liberdade, a independência, quem lutou por isso. Seria uma grande mudança termos um hino português sobre cravos vermelhos e o fim da ditadura, do império, da matança em África. Um hino ao 25 de Abril, que foi o mais mundo que demos ao mundo. Em vez disso o que temos é um hino com o último cunho salazarista a clamar pelos heróis dos mares, pela nação imortal, às armas, às armas, contra os canhões marchar. Porque não? Porque estamos em 2018.
7. Os espanhóis angustiam-se sem saber do que se livraram. Eles que não têm letra no hino, volta e meia lá vêm com o assunto. Ah, aqueles onze plantados no relvado, de lábios apertados, porque coitados não têm nada para cantar. A falta que uma letra faz.
Não faz. Deixem-se estar.
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